ANATOMIA DO EXCESSO

Duas novas criações de Marlene Monteiro Freitas marcam o arranque da programação da Culturgest nos primeiros meses da temporada. A abrir, a estreia nacional de NÔT — espetáculo que abriu e abalou o Festival de Avignon deste ano — revela, mais uma vez, a força singular da coreógrafa cabo-verdiana. Em janeiro apresentamos Canine Jaunâtre 3, com o Ballet de Ópera de Lyon. Um eco de perplexidade, fascínio e a violência.

Trailer NÔT

 "Uma fábula enigmática embalada pela água e pelo sangue, transportada por mornas e techno, Nick Cave e Stravinsky, folclore marroquino e folclore mexicano." in ÍPSILON, 5 SET 2025 

NÔT, a mais recente criação da coreógrafa Marlene Monteiro Freitas abriu o ano árabe do Festival de Avignon. Inspirada em As Mil e Uma Noites, a peça propõe um universo de contos-lamentos que honram aqueles que estão ausentes, num duelo entre vida e morte, prisão e liberdade, vício e virtude, realidade e desejo.

Inês Nadais em Avignon, ÍPSILON, 5 SET 2025Inês Nadais em Avignon, ÍPSILON, 5 SET 2025
Inês Nadais em Avignon, ÍPSILON, 5 SET 2025

 "Tenho fascínio por essa zona em que há coisas que nos escapam. Pela forma como somos, como podemos ser, impressionados pela noite"
Marlene Monteiro Freitas in ÍPSILON, 5 SET 2025 

Abertura, impureza e intensidade

O lançamento do livro Dança Fora de Si - A Obra Coreográfica de Marlene Monteiro Freitas terá lugar a 13 de setembro, numa conversa que contará com a presença da autora, Alexandra Balona, de Marlene Monteiro Freitas e com moderação de Liliana Coutinho. 
Cinco obras em cena e um imaginário iconográfico em convulsão. Munida destes ingredientes, Alexandra Balona entra em diálogo com a obra da coreógrafa e bailarina cabo-verdiana Marlene Monteiro Freitas. Em palco, as coreografias constroem espaços híbridos de estranheza e contradição, os corpos e os materiais em diáspora transformam-se na busca de sentidos que ecoam muitos imaginários. Amor e cólera em simultâneo dão espaço à paródia e ao gozo que permitem lidar com a brutalidade da história e do presente. No livro, a autora segue as pistas da «abertura, impureza e intensidade» que atravessam a obra de Marlene Monteiro Freitas, para traduzir a sensibilidade e a violência que resistem às palavras. A humanidade das obras coreográficas é a chave para descobrir as fontes, referências, teorias e dimensões políticas de um trabalho que escapa a todas as classificações.
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Este livro oferece um olhar sobre a obra fulgurante de uma coreógrafa cuja ousadia abala as estruturas dos teatros por onde passa. Concentra-se em cinco obras representativas: Guintche (2010), Paraíso – coleção privada (2012), Jaguar (2015), Bacantes – prelúdio para uma purga (2017) e Mal – embriaguez divina (2020). Segue a metodologia criativa de Monteiro Freitas e cruza referências do arquivo pessoal da coreógrafa com obras da história da arte, navegando entre ideias e possibilidades à imagem de um Atlas que suporta o peso do mundo. Do espanto resulta uma leitura atenta, capaz de observar e, a partir de fragmentos, revelar métodos, processos e mecanismos da arte. Os textos deste livro são «pequenas máquinas críticas para ler o ilegível».
- Resume
Alexandra Balona é curadora independente, docente universitária e investigadora. Doutorada em Estudos de Cultura com uma dissertação sobre a obra coreográfica de Marlene Monteiro Freitas, é arquiteta e docente na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa. Membro do espaço Rampa, foi curadora de diversos projetos de pensamento, performance e artes visuais. Escreve regularmente no jornal Público e na revista Contemporânea.

"Um genial freak show” in Libération, 2018

Canine Jaunâtre 3 - Pleine Lumière, épisode 1 : Se laisser surprendre
Entrevista Marlene Monteiro Freitas, Canine Jaunâtre 3
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Canine Jaunâtre 3 © Marc Domage

"O mais carnavalesco dos encontros desportivos. Sem competição nem troféus, corpos-ciborgues virtuosos transgridem com júbilo as fronteiras que separam o homem, o animal e a máquina."

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Canine Jaunâtre 3 © Marc Domage

As peças são entidades vivas

Uma Coleção para Amanhã por Cristina Peres                                                                                                                                            

Uma Coleção para Amanhã - Entrevista Marlene Monteiro Freitas por Cristina Peres | Estúdios Victor Córdon

Em 2021, o ciclo Uma Coleção para Amanhã, com a curadoria de Cristina Peres e realização de João Afonso Vaz, dedicou dez conversas à cena da dança em Portugal. Uma delas com Marlene Monteiro Freitas.

"Uma Coleção para Amanhã (as pessoas que vamos ser)
Antes de o mundo ter sofrido a grande mudança que 2020 nos trouxe a nível global e quase em simultâneo, a dança já não era apenas a arte do corpo virtuoso, aéreo e indiscutível fora dos cânones que lhe emprestavam voo, mas, ao mesmo tempo, o fechavam num código que o retirava à discussão maior do corpo.
O corpo que dança abriu caminho à expressão de muitos outros corpos e a uma diversidade de experiências que criaram mistura. Encurtando a história, que é afinal recente, incluímos a palavra e a reflexão para formular de outra maneira, e em paralelo, as descobertas que os corpos nos levaram a fazer. A imposição da distância social trouxe-nos outras possibilidades de termos ou provocarmos encontros improváveis. Deu-nos ideias sobre as perguntas que ainda não tínhamos feito, sobre a ressonância das experiências para lá do assunto tratado na altura.
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Para a memória coletiva, ficaram por nomear milhares de temas que fizeram de nós as pessoas que somos hoje. Queremos saber onde está o lastro das pessoas que, no passado, fizeram as ruturas nas artes performativas portuguesas, seja essa altura há dez, há 20 ou há 30 anos. Queremos saber que pessoas são hoje e porquê. Que pessoas somos nós depois de as termos cruzado.
A dança em Portugal viajou. Foi e voltou, comparou-se. A comparação com a realidade do outro é a experiência maior e essencial para a construção de si. Em que momento descobrimos coisas melhores do que nós ao mesmo tempo que descobrimos em nós vestígios daquilo que imaginávamos ser dos outros?
A dança relaciona-se com uma multiplicidade de “camadas” das pessoas todas e, por isso, dos públicos. Poderemos estar mais habituados a recorrer à razão para discorrer sobre o que vimos num espetáculo, mas os nossos músculos “viram-nos” em simultâneo. Os músculos “falaram” sobre a experiência? Provavelmente não. Daí que as entrevistas dos EVC se vão dedicar às perguntas que nunca foram feitas a pessoas que estavam lá na altura, e estão aqui de novo. Talvez elas fossem então cabeças de cartaz, porém agora vão estar a refletir. E vão transformar os que não eram cabeças de cartaz em protagonistas da mudança que nos fez como somos.
Eu, Cristina Peres, vou fazer as perguntas e levar as pessoas a questionarem-se. Eu estava lá há dez, 20, 30 anos, mas também não vi tudo. Como nunca temos a noção do presente, do passado e do futuro num só momento, vamos tentar ver a marca que ficou, valorizando o ser ponto de chegada. E mais ainda ser ponte para o que aí vem.
Um ou dois convidados. Um tema. Uma conversa que é destinada a viajar até onde a dança chegar. Sem limites de tempo nem de espaço, a construir uma coleção para amanhã."
Cristina Peres, 2021
- Resume

"Um dos maiores talentos da sua geração"         

"Foi uma grande honra receber esta distinção. O poder dionisíaco é o poder da ilusão, do mistério, do feitiço, de ver o que lá não está, sentir o que não seja palpável, de crer e de querer... Isto é tudo o que procuro quando vou ao teatro ver uma peça. É também o que procuro através do meu trabalho, enquanto processo criativo e do espetáculo. Se consigo ou não, é outra questão... Para que haja enfeitiçamento, é necessária a suspensão da realidade, atrofiar o quotidiano com as suas regras, leis e preocupações. E só assim surge de facto uma geografia de livre circulação, um terreno sem fronteiras, espaço em que os sentidos, a emoção, a razão, o imaginário se interpenetram, muito próximo do universo do sonho. A distinção foi uma grande surpresa, trouxe felicidade e apreensão. Felicidade, por sermos uma equipa grande de colegas, amigos e familiares que direta e indiretamente apoiam o trabalho, a celebrar. Apreensão, porque antevi que a distinção significaria uma sobrecarga de trabalho, em entrevistas e outros compromissos, mas acabou por correu tudo bem."

Marlene Monteiro Freitas recebeu o Leão de Prata da Bienal de Veneza 2018, excerto entrevista Teatro Municipal do Porto 

Entrega Leão de Prata da Bienal de Veneza 2018, Marlene Monteiro Freitas

Sobre Marlene Monteiro Freitas

Marlene Monteiro Freitas (Cabo Verde, 1979) estudou dança na P.A.R.T.S, em Bruxelas, na ESD – Escola Superior de Dança e na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Trabalhou com coreógrafos como Loic Touzé, Emmanuelle Huynh, Tânia Carvalho e Boris Charmatz. Entre outras, as suas criações incluem: Canine Jaunâtre 3 (2024), LULU (2023), RI TE (2022), ÔSS (2022), a performance Idiota e exposição X AND (2022), Pierrot Lunaire (2021), Mal – Embriaguez Divina (2020), a instalação Cattivo (2019), Canine Jaunâtre 3 (2018), Bacantes – Prelúdio para uma Purga (2017), Jaguar (2015), De Marfim e Carne Estátuas Também Sofrem (2014), Paraíso-Colecção Privada (2012), (M)imosa (2011), Guintche (2010), A Seriedade do Animal (2009), Uns e Outros (2008), A Improbabilidade da Certeza (2006), Larvar (2006), Primeira Impressão (2005). NÔT é sua mais recente criação para o Festival de Avignon. O denominador comum destas obras é a abertura, o hibridismo, a impureza e a intensidade. Em 2015, em Lisboa, cofundou P.OR.K, a estrutura que, desde então, tem produzido o seu trabalho. Em 2017, Jaguar recebeu o Prémio SPA de Coreografia e o Governo de Cabo Verde distinguiu as suas realizações culturais. Em 2018, foi premiada com um Leão de Prata pela Bienal de Veneza. Em 2020, Bacchae recebeu o Prémio de Melhor Performance Internacional da Les Prémis de la Critica d'Arts Escèniques de Barcelona, e, em 2022, recebeu o Prémio Chanel Next e o Prémio Evens de Artes. Desde 2020, é cocuradora do projeto (un)common ground, sobre a inscrição artística e cultural do conflito israelo-palestiniano.
FICHA TÉCNICA

EXCERTOS UMA COLEÇÃO PARA AMANHÃ
Cristina Peres

EXCERTOS TEXTO PÚBLICO
Inês Nadais

EDIÇÃO
Catarina Medina

DESIGN E WEBSITE
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