Já vamos às musiquinhas, agora vamos falar um pouco.
Zeca Afonso
Em 1983, José Afonso, subiu aos palcos dos coliseus de Lisboa e do Porto para os seus últimos concertos. O concerto de Lisboa, registado pela RTP, tornou-se um marco na memória coletiva portuguesa. José Afonso, ao vivo nos Coliseus, 1983 é um espetáculo, com encenação de Gonçalo Amorim / Teatro Experimental do Porto, que entrelaça música, teatro, performance e poesia. Não pretende reconstituir-se o concerto original, mas sim reinterpretar o legado de Zeca.
Mergulhamos em 1983 para pensar 2025. Gonçalo Amorim falou-nos mais sobre o processo de trabalho em torno do espetáculo.
Havia um desejo grande de trabalhar algo relacionado com o José Afonso.
"Isto é uma vontade muito antiga, mas sabemos que a figura é tão grande para a cultura portuguesa do século XX, é tão relevante, que não é fácil tomar a decisão de fazer algo sobre o José Afonso. Então, pronto, fui tendo medo, no fundo, de pegar no legado. Mas houve aqui alguns fatores que me fizeram decidir. Por um lado, sentir-me mais maduro como criador, também o facto da família do José Afonso ter conseguido um feito notável para todos nós, na verdade, para todos nós portugueses, que foi a classificação da discografia do José Afonso como património cultural nacional. E essa classificação permitiu recuperar muitas das bobinas originais que não estavam acessíveis. Iniciou-se um processo de remasterização dos vários discos, inclusive o do último concerto que deu, o último foi, na verdade, no Coliseu de Porto, mas o que foi gravado foi o de Coliseu de Lisboa, e essa reedição desse álbum conta com muitas novidades. Então, quando ouvimos esta nova gravação, de uma hora e cinquenta e três, temos as várias intervenções do José Afonso, intervenções do público, muito, muito som de palmas, portanto, isto foi, assim, um dos primeiros factores, e também a proximidade com o Pedro Afonso e com a Zélia Afonso."
Pintura de mural na sede do
Teatro Experimental do Porto
"Havia aqui nestes concertos uma componente dramática forte, que se ligava muito ao trabalho que temos feito ultimamente. Normalmente os processos dramatúrgicos são acompanhados pelo Rui Pina Coelho e a componente plástica pela Catarina Barros. Decidimos recorrer também a dois colaboradores recorrentes do nosso trabalho, que são o Pedro João e a Mariana Leite Soares, para fazerem a direção musical. Parece-me que há dois gestos de encenação que são fundamentais, não são nada de muito complicado, mas que me parece que marcam o espetáculo, que é o entregar da voz do José Afonso à Mariana Leite Soares, uma jovem cantautora do Porto, que tem formação clássica, mas tem trabalhado muito em sonoplastia, em desenho de som, mas também como compositora.
É uma espécie de jovem faz-tudo. E colocar as palavras do José Afonso na voz de uma jovem portuguesa de 30 anos, com uma voz muito característica e que comunica, parece-me, com os tempos que vivemos. Através da voz da Mariana conseguimos que o público de 2025 sinta imediatamente a vibração que me parece a correta na relação entre 1983 e 2025.
Termos pedido a cinco autores para escreverem para a voz interior dos espectadores, é o segundo movimento, o segundo gesto de encenação que me parece relevante. Pedimos à Marta Figueiredo, à Lígia Soares, à Susana Moreira Marques, ao Miguel Cardoso e ao próprio Rui Pina Coelho, que também assina a coordenação dramatúrgica disto tudo, que escrevessem para o discurso interior de um espectador, podia ser um espectador de 1983, podia ser um espectador de 2025, os textos situam-se de forma mais abstrata ou mais concreta em 2025, e temos atores na plateia que vão intervindo à medida que o concerto decorre e partilhando o que estão a sentir."
Que tipo de força temos?
"Não é um espetáculo nostálgico ou a tentar recuperar os símbolos da Revolução, é um espetáculo que busca inspiração e abrigo na dimensão ética e política e artística do José Afonso, é um espetáculo consciente dos tempos difíceis que vivemos e da necessidade de afinarmos as nossas vontades, nós que nos dirigimos a um auditório.
O espetáculo é triste, de alguma maneira, pode-se dizer que tem ali uma tristeza, uma melancolia presente, mas não deixa de ser um espetáculo muito inspirador, parece-me, pelas reações que tivemos. Recoloca-nos num lugar que pode ser invernoso, mas que nos parece ser o certo, de análise do mundo, de análise da nossa temperatura coletiva, de, "ok, podemos estar mal, mas as respostas têm que ser coletivas e discutidas e com estratégia". Há uma consciência de que é difícil, a consciência de que é difícil estar presente num espetáculo, e que nos temos que reorganizar, sem dúvida, mas ausculta as pessoas, como é que estamos a fim de nos reorganizarmos, como é que estamos, temos força, que tipo de força é que temos?"
José Afonso, ao vivo nos Coliseus, 1983
Texto de Rui Pina Coelho
Fragilizado pela doença que viria a ceifar-lhe a vida em 1987, José Afonso subiu ao palco pelas últimas vezes a 29 de Janeiro de 1983, no Coliseu de Lisboa e a 25 de Maio do mesmo ano, no Coliseu do Porto rodeado de amigos, intérpretes e músicos que o acompanharam ao longo da sua trajetória musical. No dia seguinte, 26 de Maio de 1983, apresentou-se no Jardim da Sereia, em Coimbra, para receber a medalha de honra da cidade. Mas ali, já não voltou a cantar.
O concerto de Lisboa, registado pelas câmaras da RTP, transformou-se num dos momentos mais marcantes da memória coletiva portuguesa: um episódio profundamente comovente da história cultural do país no pós-Revolução. Com quase duas horas de duração, o espetáculo ficaria consagrado num álbum duplo e num filme-concerto. Este concerto foi editado em disco pela Diapasão ainda em 1983; a RTP lançou uma versão reduzida (57 minutos) em VHS e, mais tarde, em 2010, em DVD. Em maio de 2024 surge uma nova edição comercial que, reunindo diversas fontes sonoras, permite reconstituir a totalidade do espetáculo, com 1h53. Para esta edição foram utilizadas fitas analógicas de filmagens inéditas destinadas ao cinema, de Luís Filipe Rocha, com captação de som de Carlos Alberto Lopes, que o engenheiro de masterização Florian Siller integrou nas gravações anteriormente editadas, realizadas no Coliseu sob a direção de José Fortes e da sua equipa. Todo o processo de recuperação e masterização decorreu em dezembro de 2023, no Soundgarden Tonstudio, sob a supervisão de Nuno Saraiva (Mais 5) e da família de José Afonso. É a este novo material que o espetáculo responde.
José Afonso, ao vivo nos Coliseus, 1983 é um espetáculo de música, teatro, performance e poesia, com encenação de Gonçalo Amorim, coordenação dramatúrgica de Rui Pina Coelho, cenografia de Catarina Barros e direção musical de Mariana Leite Soares e Pedro João, que lideram uma banda também constituída por Josué, Saulo Giovannino e Teresa Costa. O espectáculo inclui ainda textos de Lígia Soares, Marta Figueiredo, Miguel Cardoso, Rui Pina Coelho e Susana Moreira Marques. Não se trata de um reenactment – nunca o poderia ser. Aproxima-se, talvez, daquilo a que se tem vindo a chamar Gig Theatre, uma forma teatral que tem vindo emergiu na segunda década do século XXI, em particular no Reino Unido: um território híbrido onde a energia de um concerto se articula com a construção narrativa do teatro, entrelaçando momentos musicais e segmentos dramáticos. Mais ou menos. Neste espírito, este espetáculo não se limita a “recriar” o alinhamento do histórico concerto de José Afonso e dos seus convidados. Integra a escrita original de cinco autoras e autores que, dialogando com o universo musical de Zeca e com os acontecimentos históricos evocados em cena, o exploram com liberdade criativa, abrindo novos sentidos e ressonâncias.
O ponto de partida são os dois últimos concertos de José Afonso, em 1983. Neles, além do adeus musical e da homenagem fraterna que amigos, admiradores e camaradas lhe prestavam, Portugal despedia-se também do sonho utópico de Abril. A festa revolucionária extinguia-se com o seu maior cantor. O país preparava-se para entrar na Europa e deixava para trás a utopia que o moldara – despedindo-se com alegria e camaradagem, com coragem, mas também com melancolia, com lágrimas contidas e com ranger de dentes. Nos Coliseus de Lisboa e do Porto, com a voz ainda luminosa de José Afonso, Portugal despedia-se do nunca desmentido PREC e da imaginação de Abril, de punhos cerrados, apontados ao futuro. E com a imaginação acesa.
FICHA TÉCNICA
TEXTO
Entrevista a Gonçalo Amorim
Rui Pina Coelho
FOTOS
José Octávio Peixoto
EDIÇÃO
Carolina Luz
REVISÃO DE CONTEÚDOS
Catarina Medina
DESIGN E WEBSITE
Studio Macedo Cannatà & Queo





