Itinerário de imagens póstumas
A matéria orgânica dos mortos alimenta os vivos, figura no corpo dos atores, na transfiguração das imagens e na exuberância da ironia. São figuras que se constroem em diferido e que se atualizam a todo o momento.
O Riso dos Necrófagos parte das imagens que sobreviveram na memória dos vivos dos terríveis acontecimentos da Guerra da Trindade, onde, em 1953, a violência colonial matou um número ainda hoje indeterminado de santomenses.
As imagens que figuram na cena são convergências do passado, do presente e do futuro. Uma espécie de alucinação febril onde o espectador é envolvido numa configuração que se constrói na transgressão dos nexos de causalidade das categorias de espaço e de tempo - como no sonho e no delírio.
A violência quotidiana a que os corpos negros são sujeitos encontra a sua raiz numa estruturação de poder que deu origem à Guerra da Trindade. Aqui, a violência é invocada a 2 tempos: é a do passado, mas é também a do presente, na sobreposição de imagens, onde o sedimento dos mortos se mistura com o impulso vital dos corpos na cena.
A narrativa constrói-se a partir das imagens da memória, que nunca se fixam, como um mergulho no esquecimento, nas águas profundas da escuridão de onde sobrevêm imagens, vagas e ténues, outras absolutamente concretas, que se atravessam no delírio dos corpos.
Aparece-nos o cerimonial depois do massacre, uma fantasmagoria delirante que hipnotiza o espectador na profusão de imagens para a cena onde a violência, subtilmente, já se instalou e obriga a suster a respiração.
No palco 9 atores negros - Benvindo Fonseca, Binete Undonque, Daniel Martinho, Gio Lourenço, Mick Trovoada, Neusa Trovoada, Vera Cruz, Xullaji, Zia Soares - sob a direção artística de Zia Soares, a primeira mulher negra diretora artística de uma companhia de teatro em Portugal, e isso obriga-nos a uma reflexão que no contexto contemporâneo é mais pertinente do que nunca. O espaço de experimentação que o Teatro GRIOT tem vindo a desenvolver manifesta-se absolutamente neste espetáculo, onde mais do que se produzir imagens do passado, se produzem imagens para o futuro.
Sofia Berberan, Fotógrafa