RITUAL DE PASSAGEM

Com um abraço às amigas e amigos santomenses: Abigail Tiny, Ana Torres, Ângelo Torres, Benvindo Semedo, Conceição Lima, Carlos Espírito Santo, Inocência Mata, Ivanick Lopandza, João Carlos Silva, Kwame Sousa, Lamine Torres, Luisélio Salvaterra Pinto, MachimGang, Maria e Nick, Mick Trovoada, Neusa Trovoada, Olavo Amado, Paulo Daio, Raquel Lima, Solange Salvaterra Pinto, Zeca Cardoso e aos gémeos da minha infância.

A utopia de esvaziar o mar

“Non sá ni abismu
Ni libá d’ocá
Un gá bilá bissu
Un sca tende vozu de ningue tamen
Icé sá komessu.
Isto é sobre o começo.
O mundo começa a acabar e a paz é uma guerra que ainda não tem fim.
Estamos agora no abismo.
No coração do ocá faço-me o bicho que já sou.”

O Riso dos Necrófagos transporta a esfera carnavalesca do desfile para o chão da performance construindo a isocronia no corpo dos atuantes; é prolongamento do percurso celebratório, entrópico, onde os atuantes manipulam imagens, desossam e riem do delírio na convergência de todos os tempos que evoluem por via de mecanismos do transe e da possessão — o corpo transfigura a cena à medida que os vestígios e os fragmentos da carnificina são devorados pelos atuantes-necrófagos.

“- Tá cheirar quê?
- Tá cheirar catinga.”

É a ilha-necromante.
É o manifesto do riso.
A exultação do riso abençoado pelos mortos.
Um caos que não define a ordem.
Afinal a utopia de esvaziar o mar.


Zia Soares

encenadora, diretora artística do Teatro GRIOT

Ensaio de "O Riso dos Necrófagos" ©Sofia Berberan
Ensaio de "O Riso dos Necrófagos" ©Sofia Berberan
©Sofia Berberan
©Sofia Berberan
 ©Sofia Berberan
 ©Sofia Berberan
©Sofia Berberan
©Sofia Berberan
©Sofia Berberan
©Sofia Berberan
©Sofia Berberan
©Sofia Berberan
©Sofia Berberan
©Sofia Berberan

Itinerário de imagens póstumas

 

A matéria orgânica dos mortos alimenta os vivos, figura no corpo dos atores, na transfiguração das imagens e na exuberância da ironia. São figuras que se constroem em diferido e que se atualizam a todo o momento.

O Riso dos Necrófagos parte das imagens que sobreviveram na memória dos vivos dos terríveis acontecimentos da Guerra da Trindade, onde, em 1953, a violência colonial matou um número ainda hoje indeterminado de santomenses.

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As imagens que figuram na cena são convergências do passado, do presente e do futuro. Uma espécie de alucinação febril onde o espectador é envolvido numa configuração que se constrói na transgressão dos nexos de causalidade das categorias de espaço e de tempo - como no sonho e no delírio.

A violência quotidiana a que os corpos negros são sujeitos encontra a sua raiz numa estruturação de poder que deu origem à Guerra da Trindade. Aqui, a violência é invocada a 2 tempos: é a do passado, mas é também a do presente, na sobreposição de imagens, onde o sedimento dos mortos se mistura com o impulso vital dos corpos na cena.

A narrativa constrói-se a partir das imagens da memória, que nunca se fixam, como um mergulho no esquecimento, nas águas profundas da escuridão de onde sobrevêm imagens, vagas e ténues, outras absolutamente concretas, que se atravessam no delírio dos corpos.

Aparece-nos o cerimonial depois do massacre, uma fantasmagoria delirante que hipnotiza o espectador na profusão de imagens para a cena onde a violência, subtilmente, já se instalou e obriga a suster a respiração.

No palco 9 atores negros - Benvindo Fonseca, Binete Undonque, Daniel Martinho, Gio Lourenço, Mick Trovoada, Neusa Trovoada, Vera Cruz, Xullaji, Zia Soares - sob a direção artística de Zia Soares, a primeira mulher negra diretora artística de uma companhia de teatro em Portugal, e isso obriga-nos a uma reflexão que no contexto contemporâneo é mais pertinente do que nunca. O espaço de experimentação que o Teatro GRIOT tem vindo a desenvolver manifesta-se absolutamente neste espetáculo, onde mais do que se produzir imagens do passado, se produzem imagens para o futuro.

     Sofia Berberan, Fotógrafa

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O Riso dos Necrófagos - Processo de trabalho

O esqueleto da casa e a Ilha

O ritmo. As imagens rítmicas. O som da floresta. Os tambores. A dança. O esqueleto da casa e a Ilha. Onde acaba a terra e onde começa.

"No silêncio escuto o vazio."

"A minha boca é um abismo" entre...

Mas a Física do silêncio espera... Retarda o ritmo e o espetáculo espera. A voz surge, mas a voz depois do silêncio. Eles sentem ou representam? Mas é a questão da sensualidade dos corpos, criando formas e figuras geométricas dentro da partitura. São eles ou personagens que vão ao nosso encontro. Sinto-me espectador do espetáculo que configura algo de uma memória arcaica ou contemporânea.

Faço como se eu estivesse no Mundo: "Mamã.(...) Não consigo, não consigo. Eles vão me matar. Eles vão me matar." Eles vão matar-nos. Quem? O segredo do espetáculo que é preciso desenterrar para que as nossas consciências não sofram de uma doença. Há risos. Era um abutre. Quem? Roubaram-nos as terras. Ao longe vemos o esqueleto da casa na Ilha (memória da Ilha de Mandela ao longe, na prisão, e a cidade do Cabo também ao longe). É uma questão de perspetiva. Onde? Só o Destino dirá.

Talvez a percepção de algo diferente: a prospeção do reportório de uma companhia de teatro. 

Há uma lírica das Palavras trabalhadas nas frases: a Memória e o desgaste da Palavra num momento repetitivo com a vibração dos atores mostrando o suor do corpo que comprime o espectador para o seu imaginário.

"Mostra-me o sangue!" e o espetáculo vai-se elaborando; "O sangue da lua". A ilha ao longe, mas próxima porque habitamos nela. Sentimos em associações de frases a palavra carnificina. A carnificina no alvor fantasmático. Ritual presentificado no agora e na memória de vivências em algum lugar, nem que seja a presença do fantasma da Ilha e o esqueleto da casa.

Rogério de Carvalho
Encenador

 

 

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Buscando o Respirar da Terra

A fiscalidade dos corpos em cena teve como principais pontos de partida as rotinas de trabalho, as danças tradicionais, animais predadores, em especial os necrófagos (particularmente os abutres), todos estes elementos (entre outros) atravessados pelo animismo de São Tomé, pela projeção dessa ideia de respiração ou pulsação da Terra. Assim, o movimento resulta da recriação/reinterpretação e decomposição dos  materiais acima referidos sob a óptica da pulsação/respiração, tensão/densidade, transe/ possessão/ onirismo/ fantasmagoria,  vida/morte e  resistência, em crescendo, acumulação e exaustão como prenúncio de explosões ainda por acontecer.

Lucília Raimundo

Intérprete/criadora multidisciplinar

O Riso dos Necrófagos - Processo de trabalho

Mulheres no teatro, uma presença invisível

Será que as mulheres têm estado pouco presentes nos teatros e nos palcos? Não, mas é forçoso constatar que essa presença é acompanhada de uma invisibilidade ou até subalternização de muitas das funções que tiveram no teatro, para além da de actriz. E a que se deve essa redução do lugar que lhes foi atribuído na actividade teatral, pelo menos desde que puderam dar-se a ver nos palcos a partir do século XVI, no ocidente? A principal razão está no facto de os discursos que se referem à arte do teatro, às suas práticas e representações na vida das sociedades, serem maioritariamente produzidos por homens e depender deles e dos critérios que estabelecem e mobilizam tornar (in)visíveis as mulheres nas mais diversas funções e lugares da prática teatral.

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No teatro nada é diferente do que se passa na vida em geral. É preciso deixar de associar a mulher à esfera privada e, portanto, de omitir as acções que praticam no espaço público, passando a reivindicar a conquista desse espaço com plenos direitos e a respectiva visibilidade.

Encontramos menção a algumas mulheres envolvidas na actividade teatral em Dicionários ou Enciclopédias do Teatro e do Espectáculo, ou em obras como Feminae. Dicionário Contemporâneo, publicado pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género em 2013, dirigido por José Esteves e Zília Osório de Castro, pioneira nos estudos de género entre nós. Mas, pelo contrário, as narrativas históricas concedem pouco espaço às mulheres. É como se, para a construção dessas histórias, o que fizeram actrizes, empresárias, directoras de teatro, dramaturgas, encenadoras, programadoras mais recentemente, não fosse relevante ou decorresse de uma qualquer manifestação de excepcionalidade. Podemos recuar até ao século XVI na Europa para encontrar registos da presença de mulheres, actrizes, nas primeiras companhias, mas a sua direcção está associada a homens. Isabella Andreini (1562-1604) dirige, a partir de 1589, com o marido Francesco Andreini a companhia dos Gelosi, onde actuava desde 1578. Mas é apenas como actriz célebre, ou até excepcionalmente como poetisa, que surge referida. Como estender à codirecção da companhia o sucesso que esta obtinha, como actriz, junto das cortes europeias? Por vezes basta reler a documentação que chegou até nós com outros olhos, colocando questões sobre aspectos omissos a partir da própria actividade teatral para, dessa forma, recuperar informação que nos fala dessas outras acções desempenhadas pelas mulheres no teatro.

Importa, por conseguinte, seguir o seu rasto para resgatar o contributo que trouxeram no desempenho de funções basilares na vida de companhias ou nas transformações artísticas que foram acontecendo no teatro. Só dessa forma é possível mudar as narrativas onde (não) surgem. Importa tentar perceber o que fez com que se tornassem personagens secundárias na história do teatro, quando não o eram na realidade, ainda que disputassem permanentemente condições para a prática das suas funções, contornando ou lutando contra estereótipos morais e sociais. É preciso identificar esses estereótipos que são na verdade as formações discursivas que “autorizam” certas representações, ou dito de outra maneira, que definem os valores, os códigos de conduta, as leis que regem as acções (o exercício do poder, por exemplo) das mulheres na sociedade e por extensão, no teatro. Daí poderemos partir para uma compreensão alargada das formas de organização da actividade profissional entre homens e mulheres, para o entendimento das modalidades de exercício da liderança e da circulação do saber das mulheres conforme o tipo da sua inserção numa estrutura de produção e criação, bem como das motivações artísticas, das opções identitárias e das circunstâncias que têm de gerir no desempenho das diversas funções.   

Estas mulheres inscrevem nas suas memórias e biografias aquilo que querem ou não tornar público, nos poemas que foram sendo dedicados às actrizes pelos “admiradores” emergem os padrões que ajuízam da sua arte e mérito (a beleza, a elegância, a inteligência das personagens), nas críticas e notícias nos jornais alimenta-se a curiosidade do público pela figura e nem sempre pelo seu trabalho, na produção de imagens (sobretudo com o advento da fotografia) joga-se a fama presente e a posteridade, em documentação legal e oficial (contratos, nomeações, correspondência, relatórios, decisões de tribunal, condenações na polícia, decisões da censura) fixam-se parâmetros para a sua acção e adivinha-se o ponto de vista, quase sempre moral e machista, que subjaz à produção desse discurso. 

Em quantidade, estes documentos não conseguem competir com o que ficou escrito acerca do lugar dos homens no teatro. Mas um regresso aos arquivos que já está em curso há alguns anos, no âmbito dos estudos de género, poderá trazer mais complexidade ao estudo. E há que incentivar as mulheres que laboram no teatro a criarem os seus próprios arquivos, a cuidarem do discurso que lhes diz respeito, a produzirem esse mesmo discurso.

Em Portugal, quando procuramos estas mulheres envolvidas nos muitos fazeres do teatro, vemos surgirem nomes que conseguiram tornar-se visíveis por sua própria iniciativa, a par de outros nomes descarnados, reduzidos às datas de nascimento e morte, a alguns trabalhos de destaque no palco.

O que sabemos da actriz Emília das Neves (1820-1883) resulta das suas tomadas de posição públicas, por escrito, da mobilização dos seus admiradores, da utilização da sua influência junto do poder político. Dita analfabeta, discutiu na sua longa carreira, os termos dos seus contratos e o seu reportório, dirigiu uma companhia e colocou para o seu trabalho a fasquia tão alta, ao ponto de competir com as suas pares da cena europeia. Apesar do que se sabe, a relação sentimental que viveu com um par do reino foi mantida fora da curiosidade pública, evitando a contaminação entre a arte e os valores morais que muito pesavam sobre o lugar da mulher no teatro.

Contudo, muitas das suas contemporâneas, talvez analfabetas como ela, não souberam contornar as limitações que lhes eram apontadas (baixa origem social, falta de educação) e a instabilidade da sua profissão. Como o fez, por exemplo, Mercedes Blasco (1870-1961), que, possuindo “mais mundo”, desenvolveu uma longa carreira de escritora e de cidadã activa durante a Grande Guerra. O seu discurso crítico, na primeira pessoa, requer ainda uma análise fina para revelar os pontos do pano de fundo onde era possível - e “até onde” era possível – inscrever a figura da mulher no teatro. Sendo o teatro durante séculos uma indústria, foi o seu contributo como actriz que mereceu destaque nos relatos e documentos. Mas porque não conseguimos encontrar referências a funções na máquina teatral sem particular visibilidade (as costureiras, as camareiras, por exemplo), embora profissões manuais desempenhadas pelos homens sejam mencionadas em documentos.

Nesses tempos, outras actrizes, utilizaram outras estratégias: tornaram-se empresárias, dirigiram companhias, organizaram digressões ao Brasil, por exemplo. Que saberes mobilizaram? De que capital necessitavam? Como geriam as finanças? Como programavam a actividade? Como constituíam os elencos e a equipa técnica, de quem dependiam? Só há pouco tempo foram dados passos no sentido de compreender o que acontece para que haja teatro, o que está para além da dimensão artística e lúdica, mas que explica em larga medida o espectáculo que é vendido ao público.

O que sabemos de Júlia Mendes, actriz, fadista e empresária (1885-1911), deixa entrever uma figura que, tendo começado a cantar fado na rua e ganhando experiência nos vários palcos de revista e o favor do público, se lança como empresária de um teatro de feira, o Teatro Chalet, que tomará depois da sua morte o seu nome. O sucesso da primeira e única produção por ela dirigida parece assentar nas opções artísticas tomadas: a constituição do elenco e da equipa artística (autores, compositores, cenógrados, encenadora) numa forte aposta na qualidade do espectáculo a rivalizar com os próprios teatros de segunda ordem onde trabalhara em revista. Que teria impedido Júlia Mendes, se o tivesse desejado, de dirigir o Teatro da Trindade ou o Teatro Avenida que bem conhecia? Meios financeiros? O reconhecimento pelos pares da capacidade para gerir esses teatros? Espaço aberto num território ocupado pelos homens empresários com os quais concorria, talvez.

Apesar disso, várias mulheres se aventuraram na criação de empresas e na direcção de companhias. Sabemos pouco sobre o que fizeram, mas sabemos o que tinham de fazer: alugar um teatro e pô-lo em condições de ser usado, constituir uma equipa técnica e artística, comprar, encomendar ou escrever peças de acordo com o elenco, pensar o espaço cénico, a música se fosse caso disso, programar os ensaios, fazer contratos, pagar as contas, impor disciplina, pensar na divulgação e relação com a imprensa, entre muitas acções que levavam no século XIX a comparar um teatro a uma fábrica. Lucinda Simões (1850-1928) foi actriz, mas distinguiu-se como poucas na encenação, na direcção de actores e na gestão da sua própria companhia criada em 1897, já depois de uma carreira de sucesso no Brasil. Adelina Abranches (1866-1945), para além de integrar como actriz diversas companhias, dirigiu a sua entre 1913 e 1929 onde encenou e fez a direcção artística de muitos espectáculos, o mesmo acontecendo na Companhia Rey-Colaço-Robles Monteiro no final da década de 30; Maria Matos (1886-1952) estreou-se como empresária em 1915 para se “desembaraçar”, usando as suas palavras, da obrigação de só representar as farsas que lhe impunham. Encenou (levou uma semana só com as duas primeiras cenas, na sua primeira encenação, confessa) cerca de trinta e três peças e foi professora no Conservatório, de onde se demitiu, protestando por estar a ser excluída de toda a actividade da escola.

Está também por fazer o estudo sistemático das direcções mistas de companhias. Actrizes houve que se juntaram para fundar companhias, sem o aval de uma figura masculina. Para além de isso representar uma tentativa de realização de projectos próprios, fora dos interesses empresariais, mas também de potenciar o seu sucesso junto do público e contrariar um certo fechamento do campo teatral, estas experiências deixaram marca, justamente por afirmarem a iniciativa feminina, exprimindo alguma independência lentamente ganha pelas mulheres na sociedade. O estudo de alguns destes casos exigirá o cruzamento com a participação cívica das mulheres na sociedade portuguesa, sobretudo a partir dos anos 30.

Dois exemplos apenas: a companhia criada por Lucília Simões (1879-1952) com Ilda Stichini em 1931, ou com Aura Abranches em 1932-33, depois de ter tido a sua própria companhia entre 1921-23 e outra com o seu marido Erico Braga, num longo percurso onde a notoriedade como actriz se fez também acompanhar do trabalho como encenadora, inclusive no cinema, em 1951. Bem mais perto de nós, Luzia Maria Martins (1927-2000) e a actriz Helena Félix (1920-1991) foram responsáveis por uma companhia, o Teatro Estúdio de Lisboa, em 1964, que revelou possibilidades de trabalho artístico e estético novas, o que não foi compreendido pelo meio artístico e colidiu mesmo com os constrangimentos políticos e o conservadorismo social dos anos 60 e 70. Luzia Maria Martins foi directora, encenadora e escritora, formada em Londres em encenação e cinema, abriu caminho à geração de mulheres que após a Revolução de Abril escolheu alargar as formas da sua intervenção na criação teatral. Fê-lo pela dimensão política dos textos que escolhia levar a cena, pelo conhecimento que tinha e procurava transportar para as suas encenações do teatro épico, pela ousadia de escrever os textos dos espectáculos. 

Casais de artistas na vida e/ou no palco criaram empresas como fonte de negócio, claro, mas em alguns casos também para introduzir mudanças artísticas nas suas carreiras ou ganharem independência em relação a empresários mais interessados no lucro do que na qualidade artística. Apostavam em reportório diferente e mais moderno, mudança de género de teatro, constituição de novos elencos. São vários os exemplos a merecerem um estudo que coloque questões sobre o que trouxeram à gestão dessas companhias/empresas as mulheres que lhes davam o seu nome.

É o caso de Berta de Bívar (1891-1964) e a companhia que fundou com Alves da Cunha entre 1922 e 1940, em que surge referida como actriz. Descobrimos que na Companhia do Teatro da Trindade, em 1948, participa na realização de um cenário ou decoração do espaço. Terá desempenhado esta função na sua própria companhia, anos antes? Não sabemos. Mas o caso mais conhecido e que pode alimentar a tal ideia de excepcionalidade com a qual se procura justificar a presença das mulheres na gestão teatral, omitindo uma continuidade e pluralidade de funções que realmente existiu, é o de Amélia Rey Colaço. Até à morte de Robles Monteiro, em 1958, seu marido e parceiro na direcção da companhia formada por ambos em 1921, não é fácil separar as funções que cada um desempenhava, sendo que a maior experiência de gestão e produção de Robles Monteiro lhe terá trazido maiores responsabilidades no início. Depois, a concessão do Teatro Nacional D. Maria II ficará a cargo de uma mulher por cinquenta e três anos, numa gestão artística, financeira e política difícil, porque transportava a história e o valor simbólico daquele teatro, numa sociedade onde só o prestígio e uma hábil administração do poder permitiam a uma mulher ser empresária, encenadora, cenógrafa e formadora de actores como ela foi.

Em tempos mais próximos de nós, outras mulheres conquistaram a visibilidade e mostraram contribuir para a transformação do teatro me Portugal. Não sendo possível analisar aqui os seus percursos e porque em alguns casos será preciso começar por reunir documentação, refiram-se Maria do Céu Guerra (1943) que começando no teatro universitário, esteve na fundação de várias companhias (Casa da Comédia, Teatro Experimental de Cascais, Comuna-Teatro de Pesquisa) até à criação de A Barraca em 1976 que dirige com Hélder Costa e onde além de actriz tem desempenhado funções como encenadora, escritora e na concepção plástica dos espectáculos. Percebemos que a visibilidade inicial como actriz e o prestígio traduzido em prémios nacionais e internacionais, foram sendo ampliados pelo reconhecimento do trabalho de co-direcção de uma companhia, malgrado as dificuldades em colocar no mesmo plano as outras funções que vem desempenhando. O mesmo poderíamos dizer de Fernanda Lapa (1943-2020), actriz e encenadora, fundadora, em 1995, da companhia Escola de Mulheres e activista da legitimação do lugar da mulher no teatro. Também o seu longo percurso cada vez mais dedicado à encenação se fez no sentido de obter condições artísticas para realizar os seus projectos e o programa da companhia. A sua companhia foi também um lugar de emancipação de outras actrizes e criadoras.

O que parece interessante verificar, mas que carece de estudo, é até que ponto estas mulheres que se destacaram através da sua prática múltipla - na encenação, na direcção de companhias, na escrita – num meio dominado pelos homens para quem era natural destinar-lhes uma função nos seus espectáculos e mesmo determinar-lhes o futuro no teatro (quantas ficaram presas aos tais estereótipos de que falei anteriormente…) foram não só responsáveis pela construção da visibilidade para o seu trabalho, mas também para que outras mulheres arriscassem trilhar caminhos menos seguros, mas mais consentâneos com as suas aspirações e desejos sociais e artísticos. Hoje, o exemplo de mulheres que escolhem estar e como querem estar no teatro ainda não apaga a desigualdade de oportunidades, a maior invisibilidade do seu trabalho e a dificuldade com que defendem e exercem os seus direitos.

Romper com a ideia de excepcionalidade que surge ainda associada ao desempenho pelas mulheres das várias funções no teatro é o passo seguinte para ampliar a visibilidade de muitos percursos artísticos que, mesmo se inscritos numa ficha de espectáculo, se arriscam a não entrar para a história do teatro. Convido a uma visita à base de dados CETBase do Centro de Estudos de Teatro para descobrirem muitas das mulheres que fizeram e fazem essa história.

 

Maria João Brilhante

Centro de Estudos de Teatro - FLUL

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QUE RITUAL ENTRE A VIDA E A MORTE? - Zia Soares e Raquel Lima

Serão o caos e o transe dos desfiles do tchiloli ou as cerimónias espirituais de matriz africana o lugar de equilíbrio entre denúncia e celebração? Perto de acolhermos os Teatro GRIOT no Grande Auditório, ouvimos Zia Soares e Raquel Lima à conversa sobre a vida, a morte e a passagem.
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