O meu nome é António Pedro Lopes e faço a comunicação do espectáculo Começar Tudo Outra Vez. Tenho 43 anos. Sou açoriano, moro em Lisboa. Faço muitas coisas. Umas por amor, outras por vocação, outras por dinheiro. Tenho como tu muitas vidas. Muitos fins, muitos novos princípios. Tenho como tu muitas dúvidas. Não sei em qual vida estou agora. Sei que estou vivo. Sei que construo. Sei que cada dia é a possibilidade de Começar Tudo Outra Vez. É um princípio.
Um dia no Rio de Janeiro, conheci a Raquel numa esquina de uma rua. Do nada, ela voluntariou-se para organizar o meu casamento. Depois, jantei em casa dela. Depois, colaborei com ela na Coleção de Pessoas, como cocriador, como contador de histórias, como parceiro de viagem, como amigo, como amor, como família. Através dela, conheci o André, o Bernardo, o Zé, o Fanan, a Valentina, a Ágata, a Wilma, a Missanga e todas as pessoas que constituem esta família. Também conheci o Tonan através dela quando os dois se apaixonaram. Mas lembrava-me dele do espectáculo Dedicatórias de Lúcia Sigalho, um dos poucos espetáculos que me vi a ver duas vezes, a chorar baba e ranho, a sentir-me inquieto, vivo, eléctrico e transformado. Eu adoro a Raquel, o Tonan, esta família.
Mas volto ao princípio. Começar Tudo Outra Vez. A última vez que colaborei com a Raquel e com esta família foi nos dias da pandemia. Um projeto maior do que a vida afastou-me temporariamente, levou-me noutras direções. Nesses anos de distância, aprendi muito sobre comunidade, sobre ligar as partes. Aprendi também a estrategizar, a sonhar, a construir e a fazê-lo colectivamente. Voei. De um dia para o outro, perdi aquela que pensava ser a minha família nuclear. Caí. Doeu. Nasci de novo. Nasci para agarrar-me à vida, à curiosidade, e à complexidade que é segurar o tronco nas pernas, e sentir que pertenço a algo maior do que eu - um lugar, uma aldeia, uma comunidade, uma família. Sei lá. Mas vou saber.
Eu agora estou aqui. Sem certezas, só tentativas. Estou aqui para ligar as partes, as vozes, as experiências, as mundividências. Vou contar-vos uma história. Uma história com múltiplos pontos de vista. Muitas histórias. As histórias de Começar Tudo Outra Vez.
Histórias de nascer e morrer. Histórias de criação de redes de afecto. Histórias de amor e comunidade. Histórias de família. Histórias que nos batem num dia qualquer na encruzilhada e caminho curva-contra-curva que é a vida. Histórias sobre fazer teatro e nele procurar direções para ensaiar a vida. Histórias que são chaves para entrar num espectáculo de teatro, ouvindo as vozes, as dúvidas das pessoas que o fazem.
E vai assim: um dia pedi ao André, à Raquel, ao Tonan e ao Bernardo que me enviassem um áudio de dois minutos em que cada um individualmente respondesse à pergunta: O que é para ti o Começar Tudo Outra Vez? Recebi uma a uma as suas mensagens, e partilho-os aqui por ordem de chegada. (Pedi ao Bernardo quatro vezes, e quando ele a enviou não era um áudio, era um vídeo).
Eventos Relacionados
ANDRÉ TECEDEIRO (texto)
Para mim o Começar Tudo Outra Vez é um espectáculo que pensa sobre a noção de família à larga, num tempo em que há pessoas que defendem a ideia de um regresso a uma família tradicional. Este espectáculo alarga essa noção para outros formatos de família, e até à ideia de uma família quase como uma comunidade. Ao mesmo tempo, e isso tem a ver com a vida da Raquel e do Tonan, faz um paralelo entre as famílias de sangue e de vida e as famílias do teatro.
Como é que a ideia de família foi representada no teatro ao longo dos séculos? E como é que essas narrativas e criações artísticas foram criadas e influenciaram a forma como vemos a família?
Outro paralelo que surge é entre a criação artística - a criação de um espectáculo -, e a criação de um novo ser, de uma nova pessoa, de um nascimento. Às vezes em subtexto, às vezes mais evidente. A peça acende nas pessoas, de um modo muito sutil, a consciência que nós somos assentes em narrativas que nos contaram desde o nosso nascimento. Narrativas gloriosas, simples, banais. Mas é em cima dessas histórias que nós construímos a nossa personalidade, e que é aí que começam as crenças sobre nós e sobre o lugar que ocupamos no mundo. A ideia de contar uma história também é uma parte importante deste trabalho. E depois, a ideia de uma comunhão, da comunidade, as partilhas e as redes que fazemos, as formas como nos conectamos umas pessoas com as outras e como somos responsáveis, de certa forma, pelo bem estar de toda a gente dessa rede.
RAQUEL ANDRÉ (direcção artística e interpretação)
Para mim este espectáculo é sobre o encontro do meu trabalho com o do Tonan. Eu que trabalho a partir da realidade, das pessoas reais, do elogio às pessoas, acreditando que as pessoas têm sempre uma história para ser contada. E o Tonan a partir de uma ideia de ficção e de histórias clássicas também para falar sobre a realidade. Trago aqui esta ideia de elogio às pessoas porque há uma mensagem final, que espero que esteja no espectáculo, que todos nós somos a aldeia uns dos outros. Ou seja, todos nós precisamos uns dos outros, vivemos em rede, e que talvez na comunidade onde eu vivo — branca, patriarcal, europeia — , estamos a perder esta ideia de rede e comunidade, mas que talvez pelo momento político que estamos a viver, será cada vez mais importante voltar a essas redes, sentido de comunidade, de ponto de encontro, de cruzamento de pessoas, de união. E pensar que todas as crianças que estão a nascer neste momento, elas precisam dessa rede para viver e sobreviver neste mundo agora. Para isso, vamos aos nascimentos, à origem, onde tudo começa. O espectáculo é este encontro entre dois artistas que estão nesta crise. De ter ou não ter filhos, estar grávidos ou não. Se tiverem o que é que acontece? Se não estão, o que é que é decidir não ter filhos? Ou o que é que é não conseguir engravidar? Ou ter outras formas de natalidade — seja adoptar, seja fazer uma coparentalidade com outro casal? Usam o teatro e essa ficção para ensaiar essas possibilidades. Convidam uma família, as suas famílias reais, para ensaiar teatro e as cenas que fazem, pensam essas relações. No que está escrito é quase sempre sobre a morte, sobre o fim, e pouco sobre o nascimento.
O nascimento está ligado às mulheres, então é uma história que está escondida, que não está escrita e que foi muito silenciada. É um espectáculo que quer reflectir sobre a força do nascimento como uma potência. E que com certeza, que se tivessem sido homens durante a história a parir — o Foucault, o Deleuze e o … —, já teriam refletido sobre esse grande momento que é dar à luz.
Não existe isso, nem na história do teatro, nem na história dos clássicos. Mesmo na literatura há muito pouco. A gente sabe mais sobre a morte do que sabe sobre o nascimento. Queremos trazer isso também, mas tudo de uma forma leve e divertida, e sempre a desconstruir e a brincar com a ideia de ficção e realidade, e finalizar nessa relação com a aldeia num momento de celebração. É um espectáculo que quer falar de assuntos que se falam muito pouco: ter filhos, família, educar uma criança, o que é que isso tudo significa? Falar sobre isso, a partir de uma perspectiva de que se fala muito pouco, mas ao mesmo tempo de uma forma leve e divertida. É isso, e comer um cozido.
TONAN QUITO (direcção artística e interpretação)
Começar Tudo Outra Vez para mim é sobre as narrativas possíveis de quem nós somos, de onde vimos, de onde é que nos inserimos. Mas sobretudo é sobre quem é que nos fez ser quem nós somos. Todos nós vimos de um lado, todos nós vamos para algum lado. Neste momento das nossas vidas, da minha e da Raquel, questionamos por onde podemos ir, e daí a peça também falar sobre nascimentos, futuros possíveis, e também sobre teatro — esse amor que nos une.
Em última análise, esta peça é também sobre o nosso amor. Sobre o amor que construímos e que descobrimos, e que queremos de certa forma marcá-lo em forma de peça de teatro, a partir das nossas famílias, das nossas visões do mundo, da maneira de estarmos no teatro e na vida.
Com pessoas que gostamos muito e que foram fundamentais no nosso crescimento. Chegámos a um momento em que nos perguntamos: então e agora? E se fossemos construir alguma coisa além de nós dois, que no fundo é o nosso grande encontro, que seria um nascimento? Então, o que é que acontece? O que é que acontece quando alguém nasce? O que é que transforma? O que é que pode ser transformador para nós? E pensar nisso através do teatro. Isto é uma hipótese, e é muita coisa. Mas se pensar de onde é que é isto vem, de uma coleção ou de uma procura de pessoas que ajudam a pôr pessoas no mundo, o que é que acontece quando alguém nasce — que é a grande força do espectáculo — e daí termos ido para as nossas famílias e para o teatro, acho também que é uma história sobre o nosso amor. Mas também do amor das pessoas que andam à nossa volta. E no meu caso particular, no amor que eu tenho à minha filha, esse grande acontecimento da minha vida e que se mistura e faz presente nesta peça também.
BERNARDO ALMEIDA (cocriação)
Acima de tudo este projeto é sobre elogios. Um grande elogio à vida. Da existência, do nascimento, da morte, esse grande ciclo perfeito da natureza, da reciclagem, da matéria, que no caso das pessoas está cheio de rituais. Esses rituais da morte e do nascimento estão cheios de mistérios, de histórias, de tabus, de milagres, de magias. E esta peça navega em muitos desses recortes narrativos que são muito das pessoas humanas para enfrentar esse ciclo da vida e da morte. Acho que também é um elogio ao amor, e o amor aqui no sentido de pertença. Quantas mais voltas dermos nos traumas que temos na relação com a nossa família, a família não deixa de ser, na maioria dos casos, o lugar de casa, de origem, de apoio, e tantas vezes, o lugar de retorno ou de retornos ao longo da vida, inclusive na morte dos outros.
É um elogio à família e aos seus diferentes membros, e um exercício sobre a família alargada e a família escolhida, que são os amigos acima de tudo. É um elogio aos amigos também, dentro dessa forma de amor e de viagem.
O percurso da vida nós desenhamos de forma cronológica o que a torna numa grande viagem. Falamos muito dos nascimentos como esse lugar de fronteira que marca uma viragem nessa viagem que é a vida, há um antes e um depois. A Raquel fala muito, acho que não está no texto, que não há palavra, na perspectiva de quem se é mãe, para se referir à mulher que se era antes de ser mãe. Ou seja, há a palavra “mãe” que é depois de se ter o filho, mas não há palavra para essa pessoa solteira de parentalidade. (Risos). Olha -- “solteira de parentalidade” --, se calhar é o termo. E também acho que é um elogio ao jogo, no sentido do teatro, do ensaio, do humor, mas também nas várias tentativas e metáforas de casal. A peça comenta o binarismo na sociedade, mas não desenvolve muito além disso, portanto, é uma peça binária porque espelha a relação da Raquel e do Tonan. Não se fecha nas biografias deles, mas está cheia delas. Hoje até estivemos a amenizar uma cena que espelhava demasiado a biografia deles. Mas esse jogo de desenhar e ensaiar vários casais, acho que também é um elogio a isso, e a um estilo de vida que é o nosso. Portanto, acho que também é um grande elogio de viver-se através do teatro, viver-se através do jogo e do humor, que eu valorizo muito, e que também encontro neste trabalho.
SOBRE NASCIMENTOS...
Inspirámo-nos em Começar tudo outra vez e convocámos outras vozes - anónimas - para que nos contassem mais sobre o seu nascimento. Entre buracos negros, figuras alienígenas e princesas, chegámos a outras histórias.
O Projeto Invisível #8
8. O que Acontece Quando Alguém Nasce
O que acontece quando alguém nasce? Raquel André e Tonan Quito perguntaram a várias pessoas sobre as suas memórias de trabalhos de parto e nascimentos. E o que encontraram foram histórias de vida, morte, família, rituais e até de políticas de natalidade. A pesquisa faz parte do processo de criação do espetáculo “Começar Tudo Outra Vez”, que mistura sentimentos, acontecimentos históricos e geográficos que se cruzam com a utopia de uma nova vida a começar. Durante uma residência artística em Pedrogão do Pranto, na Casa do Terreiro, Raquel André gravou vários testemunhos a que chamou “As Mulheres que Guardavam as Águas”.
FICHA TÉCNICA
TEXTO, ÁUDIOS
António Pedro Lopes
EDIÇÃO
Carolina Luz
REVISÃO DE CONTEÚDOS
Catarina Medina
DESIGN E WEBSITE
Studio Macedo Cannatà & Queo