Ver com o toque
Ana Rita Teodoro sonhou com um espetáculo de dança que pudesse ser ouvido e visto. E aquilo que parecia impossível concretiza-se no palco da Culturgest, com a cumplicidade de Joana Gomes, do trio de cantores Guarda-Rios e de um corpo de baile de Serpenteadores. Na bifurcação da sua relação com a música tradicional portuguesa e a inspiração das viagens ao Japão, coreografou um espetáculo poético onde impera a delicadeza. Neste microsite entramos no mundo dos sonhos para escutar conversas, descobrir processos e reflexões sobre o que vemos e o que não vemos.
Conversas comuns
A partir de conversas comuns com Ana Rita Teodoro (coreógrafa; AR), Joana Gomes (bailarina convidada) e toda a equipa, ao longo das duas últimas semanas, partilhamos algumas divagações que compõem Sonhos Comuns. Várias foram as fontes de inspiração no trabalho de AR sobre o mundo dos sonhos.A primeira referência partilhada foi o livro O desejo dos outros: Uma etnografia dos sonhos Yanomami, de Hanna Limulja. Dele, a peça semeia a ideia de que os sonhos não pertencem ao indivíduo mas sim a comunidades, são outras formas de conhecer o mundo e outras esferas identitárias. Outra referência que AR menciona é o livro La nouvelle interprétation des rêves, de Tobie Nathan, segundo o qual a simbologia dos sonhos é contextual e que os sonhos podem ser “um esboço para o dia seguinte”, ora como aviso, alerta, desejo ou imaginação de futuro. Uma terceira fonte de inspiração foi a coleção de Sonhos no Terceiro Reich, de Charlotte Beradt, durante a ascensão do Hitler. É daqui que AR referencia o sonho do tiranicídio, sobre como “o totalitarismo invade o espaço íntimo das pessoas e o seu mundo através dos sonhos”.
No que toca ao universo onírico das bailarinas, a Joana conta-nos como mudaram os seus sonhos quando deixou de ver, ora passando a ver pontinhos de Braile escritos em sinais de stop, ora criando uma imagem inventada quando sonha com alguém.
Por seu lado, apesar de não sonhar muito, AR considera a sua intuição como uma forma de sonhar acordada. Talvez por isso faça coleção de sonhos, a partir dos quais criou partes deste espetáculo. “No ano passado, fiz um panfleto que se chama «Mestra Teodora, recolhe todo o tipo de sonhos»” que surgiu em tom de piada mas acabou por ser uma coleção de sonhos escritos. Um desses é o “sonho da Cadelinha Helga”, de uma amiga. No momento de escolher os sonhos a incluir no espetáculo, “escolhi porque achei que eram fáceis de ser musicados, porque contam uma história de forma mais concreta,” ou “porque achei engraçado, muito básico”.
Segundo AR, “para sonhar, assim como para dançar, é preciso estruturas” que potenciem esses sonhos, pelo que aos poucos foi fazendo convites a pessoas que pudessem segurar cada uma das estruturas necessárias à concretização do espetáculo.
Um dos primeiros convites foi feito à Joana Gomes, com quem nunca tinha trabalhado. Depois de se encontrarem pela primeira vez no contexto da audiodescrição, de AR ir ver alguns dos seus espetáculos e intuir “que tinha muita coisa para viver com ela, para aprender e experimentar”, convidou-a para dançarem juntas, de modo a descentralizar a visão no espetáculo de Sonhos Comuns. Assim experimentou outras formas de estar, de confiar no corpo e noutros sentidos e sensibilidades. Para a Joana, “é um privilégio(...) trabalhar com alguém que tem muita curiosidade, que tem coisas novas para nos ensinar”, o que a motivou e a fez sair da sua zona de conforto.
Além da Joana, AR chamou “Serpenteadores, para que eles também pudessem fazer dançar o meu corpo e o da Joana”.
Para aproximar o espetáculo ao público, oferecendo-lhe uma experiência háptica “tão tátil e subtil”, AR convidou Laura Salerno para dar luz a um teatro visível, “onde existem varas, cortinas, cadeiras, concretude” e a uma poética de sobreposições de camadas de luz, cor e fumo, definição e turbidez, que funcionam em coordenação com todo o engenho do espetáculo.
Para dar textura, fofura e volumes múltiplos às personagens em cena, foi convidada uma figurinista futurista. Para dar a “ver essas sutilezas do toque e da presença”, do detalhe e do todo, foi convidada uma equipa emergente de Audiodescrição, com uma abordagem ligeiramente experimental. Para “cantare” a sua coleção de sonhos, convidou ainda três Guarda-Rios, um “mestre” de som e uma tradutora de LGP.
Finalmente, a equipa conta ainda com olhares externos da dança, do audiovisual, da produção, administração, comunicação e múltiplas estruturas em coprodução e residências.
Num trabalho coletivo, coordenado, “intuitivo e bastante rápido com todas as equipas”, de muito investimento, dedicação e convívio, AR conta-nos que confia “bastante nas pessoas com quem trabalho” e que com elas pôde aprender a não controlar tudo. “Eu sinto que o trabalho está a ir numa direção que está de acordo com o meu imaginário” e que é simultaneamente onde “nós chegámos agora, todos juntos”.
Para a AR, havia um desejo profundo por trabalhar corporalidades sonolentas, ora do estádio entre a vigília e o sonho, ora do sonho ou do pesadelo – os movimentos de um corpo “despojado, que se deixa levar, mas que ao mesmo tempo é inteiro, que não colapsa completamente, mas perde um pouco o controlo, que mostra a sua fragilidade”.
Destas corporalidades, trabalham com a fisicalidade da queda – “Quem nunca sonhou que vai a cair”? –, do susto e do peso no pesadelo, como também da sonolência, do bloqueio e da liberdade dos sonhos.
Recorrem a múltiplos exercícios, ora guiados pela AR, com as apneias respiratórias para experimentar a sensação de “um corpo sôfrego, exausto”, ora guiados pela Joana para treinar o “à vontade de ficar de olhos fechados” através do toque, ativando outras camadas “físicas, de energia, de escuta” .
Quanto ao grau de improvisação e coreografia, AR conta-nos que para ela o espetáculo é extremamente coreografado. “Há uma frase da Mabel Todd, que é uma americana da anatomia experiencial, em que ela dizia «A função precede a forma.»”. Neste projeto, a intenção, “a função, os desejos, os afetos e interesses” por trás de cada prática, transição, ajuste e sentir foi pensada e coreografada.
Numa criação coletiva com pelo menos um ano de elaboração, Sonhos Comuns apresentam-nos a oportunidade de experienciar uma viagem multidisciplinar e multissensorial ao mundo dos sonhos, ora de olhos abertos, ora fechados.
Para concluir, ficou no ar a “pairare”
Uma questão difícil de “respondere”.
Que sonhos comuns para o futuro poderão “existire”?
- Coletânea de conversas com Ana Rita Teodoro e Joana Gomes, Por Leo Perene, membro da equipa de Audiodescrição de Sonhos Comuns
Canto dos Sonhadores
Chão de uma língua distante
Ai, entrando à margem da pele
Outro dia se adivinha
Quando os olhos vão fechando
Pela noite sou diverso
Outras dimensões vejo no mundo
O murmúrio do silêncio
Ai, canto dos sonhadores
Forças cheias de infinito
Ai, engenho de que me olvido
Dai nos elo, dai nos toque
Ai, para cumprir sonho florido
Sonhos Comuns
Sonho meu, sonho meu
Sonho meu, sonho meu
Diz-me lá onde estamos?
Estamos na Culturgest
Quem tu ouves é Guarda-Rios.
Mariana o meu nome
João o meu nome
Susana o meu nome
Guarda-Rios eu sou
Lanço a voz pra vos cantar
o que a noite revelou
Se miragem queres ver
Se miragem queres ver
Deixa os olhos entreabertos
Entre ver e não ver
Aqui tudo acontece
Se miragem queres ver
Se no sonho queres entrar
Deixa os olhos entreabertos
Ao palco vão chegar
Oito pessoas em pijama e edredons
Serpenteadores são
Vão uns atrás dos outros
Linhas curvas pelo espaço
Fazem sonhos andar
Pouco ou nada os faz parar
Ouve os passos com atenção
Ouve os passos com atenção
Pelo palco Serpenteiam
No ritmo dos seus passos
Seus corações vais sentir
A pulsação de um sonho
Um sonho colectivo
Engenho sonhador
Potência e pulsação
É a cor do coração
No verso e no reverso
Da noite e do dia
Temos sonhos a cumprir
Cada passo leva consigo
A esperança de conforto
Lá vem ela a curiosa
Lá vem ela a curiosa
Qu’isto tudo encomendou
Trás olhos fechados
O que é que ela não quer ver?
Lá vem ela a bailarina
O Joana o seu nome
Qu’inspirou a curiosa
Trás olhos abertos
O que é que ela está a ver?
Não me vou alongar mais
Não me vou alongar mais
Tenho muito pra cantar
Bem vinde, sonhos comuns
Uma peça em fragmentos.
Bios
Ana Rita Teodoro
(Barreiro, Portugal, 1982) é artista interdisciplinar. Mestra em Dança, Criação e Performance pelo CNDC de Angers e a Universidade Paris 8, desenvolveu como pesquisa a criação de uma Anatomia Delirante. Mais recentemente, desenvolveu uma pesquisa em torno da transmissão da dança Butô com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e do CND (Centre National pour la Danse, França) que se concluiu na conferência dançada Your Teacher, please. Estudou o corpo através das disciplinas de anatomia, paleontologia e filosofia no c.e.m. com Sofia Neuparth, e o Chi Kung na Escola de Medicina Tradicional Chinesa de Lisboa. Criou as peças MelTe, Orifice Paradis, Sonho d’Intestino, Palco, Assombro e FoFo. Colabora com diferentes artistas em projetos pontuais. Em 2022 organizou no TBA (Lisboa) uma série de conferências e workshops dedicadas a pensar a audiodescrição de dança. Ainda no TBA apresentou a peça ÃO, em co-criação com João Neves e André Teodósio. Foi artista associada do CND entre 2017-2019 e é artista associada da Associação Parasita desde a sua data de criação em 2015.
Joana Gomes
A sua primeira experiência em dança inclusiva foi com o projecto europeu FRAGILE (2011-2013) com as coreógrafas Kjersti K. Engebrigtsen (NO) e Ana Rita Barata (PT). Entre 2013 e 2015 integrou o projecto europeu Unlimited Access, onde para além de vários workshops com os coreógrafos Lucy Bennett (UK), Claire Cunningham (Escócia|UK), Caroline Bowditch (Escócia|UK), Stina Nyberg (UK), co-criou o espectáculo Rins, com coreografia de Micaela Dantas e Peter Michael Dietz, estreado no Teatro do Bairro. A nível nacional, trabalhou com o artista plástico Rodolfo Quintas, na performance Darkless no âmbito do “Lisboa Soa”, inserido nas Festas de Lisboa, com a coreógrafa Madalena Vitorino no espectáculo Estação Terminal, com apresentações no Teatro Nacional D. Maria II e no Festival Intendente em Festa em 2016. Trabalhou ainda com Tânia Carvalho no projecto Movimentos Diferentes, apresentado em 2018 na Biblioteca de Marvila, em Lisboa. Integra a CiM – Companhia de Dança desde 2013, onde interpretou os espectáculos: Edge, Contraluz, Primavera Azul, Memento, Rins, Eu Maior, Out Sight, O AQUI, Geografia Humana, Des-Acerto, SOMATATI e mais recentemente Rh - Revolução Humana.Actualmente integra a equipa do projecto Geração SOMA, que trabalha com crianças com e sem deficiência desde 2015. Em 2024 cria o seu primeiro projecto Uma Outra Forma, em colaboração com a bailarina Maria Inês Costa, uma criação que abordou a deficiência visual de uma forma leve e prática
Guarda-Rios
é um pássaro a três vozes: João Neves, Susana Nunes e Mariana Camacho. Cada um com percurso musical distinto, apresentam-se agora em formato trio. Juntou-os o interesse pela música popular portuguesa e pela exploração livre da voz, premissas que sustentam o projeto. Tendo as canções de raiz tradicional como ponto de partida, aventuram-se na criação espontânea e em tempo real de arranjos vocais a cappella. Daí resulta um repertório vivo que se transforma organicamente a cada performance.
Em Guarda-Rios, os cantores exploram as dualidades entre a ruralidade e a urbanidade; o adquirido e o incerto; a estrutura da canção e o acaso da improvisação; a estabilidade do que herdam do passado e a mutabilidade do presente. É a partir desta liberdade que se dá espaço para que as canções recuperem a sua vida social.
Juntos desde 2019, apresentaram-se já em Esposende, Lisboa, Porto, Funchal, Copenhaga e Berlim.
Parasita
é nome da Associação criada em 2014, sem fins lucrativos, com sede no concelho de Santarém, cuja ocupação se traduz na produção e realização de objectos artísticos e eventos culturais onde se privilegia a experimentação e o discurso crítico através de propostas de investigação onde processos e produtos interagem sem distinção. Em 2023, com a abertura do Espaço Parasita, no Parque das Nações, alterou a sua sede para Lisboa.
Hoje, a PARASITA funciona como uma cooperativa de artistas que compartilham recursos e objectivos para atender às características de um ambiente profissional em que a dança se torna cada vez mais um suporte fluido, cruzado por estudos práticos e teóricos, práticas expandidas, discussões sobre fronteiras entre fazer e curar, problematizações da responsabilidade cultural dos artistas e agentes conexos. Pensada como uma estrutura feita por artistas, a PARASITA é composta por Ana Rita Teodoro, João dos Santos Martins e Ritó Natálio.
A PARASITA é uma estrutura financiada pela República Portuguesa – Ministério da Cultura/Direção-Geral das Artes e, desde 2024, pela Câmara Municipal de Lisboa – CML/RAAML. É membro da Rede — Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea desde 2019.
A PARASITA rejeita qualquer ato de discriminação racial, ou relativa à identidade de género, orientação sexual, religião, nacionalidade, classe social, deficiência ou neurodiversidade.
FICHA TÉCNICA
TEXTO
Leo Perene
FOTOS
Aline Belfort
EDIÇÃO
Carolina Luz
REVISÃO DE CONTEÚDOS
Catarina Medina
DESIGN E WEBSITE
Studio Macedo Cannatà & Queo
VIDEO
Aline Belfort
EDIÇÃO
Ian Capillé