DESEJO E ABISMO

Sob o mote dos "amores proibidos", o Operafest apresenta a estreia nacional da ópera de câmara Julie (2007) – obra-prima contemporânea, do compositor Philippe Boesmans, a partir da peça clássica, Menina Júlia (1888), de August Strindberg.

Para o microsite que dedicamos a Julie conversámos com Catarina Molder, diretora do festival, que nos falou sobre emancipação, rebeldia e o desafio aos limites vigentes da sociedade.

Heroínas sacrificadas e amores proibidos

No Operafest, muitos dos enredos falam de amores proibidos, e na maior parte das óperas as heroínas acabam por morrer. Isto acontece porque, os compositores são sempre homens, que se inspiram nas tragédias da vida, e, quase sempre, são as mulheres que acabam por ser sacrificadas.

Por exemplo, em A Traviata, a protagonista sofre com a doença e a sociedade. Ela morre junto do seu amado, mas a vida e a tuberculose impedem que o seu amor se realize. É quase como um castigo — ela é uma cortesã que ama um homem de boa família, e isso não é aceite.

Também temos a história da rainha Dido, que é abandonada por Enéias. Ele tem de seguir o seu destino e fundar Roma, escolhendo o dever em vez do amor. Muitas vezes, nas óperas, as mulheres sacrificam-se — pela família, pelos filhos, até por pessoas que nem conhecem. Elas assumem esse papel de “sacrificadas”, porque ser mãe e cuidar da vida é uma responsabilidade que não escolhem, mas que enfrentam com dor e coragem. E foi o caso de Dido, que se suicida.

Depois temos a heroína Julie, que é a que mais desafia as regras deste mundo dominado por homens. É a mais transgressora de todas. Enquanto as outras se resignam ao seu destino, a Julie não. Ela tenta romper com tudo, desafia as convenções e atira-se de peito aberto, sem medo. E é ela própria que corta o pescoço — não é ninguém que o faz por ela. Usa a navalha que o Jean, de forma deliberada, lhe põe na mão. A certa altura ela diz: "Agora já não há volta a dar." Ela quer morrer com ele, acredita que depois daquilo, só lhes resta a morte. Mas ele responde: "Morrer não faz parte dos meus planos. Se tu queres, força. Trata tu da tua vida."

Música e palavra

Há peças — e óperas — em que o compositor opta por criar momentos próximos do diálogo, com passagens de texto mais rápidas, onde o canto acompanha a fala quase ipsis verbis. Há uma melodia, sim, mas ela segue de muito perto o ritmo e a intenção da palavra falada.

E é isso que encontramos em Julie. Trata-se, verdadeiramente, de uma peça transformada em ópera. Boesmans acompanha o desenrolar da ação do princípio ao fim, esteja a personagem a cantar ou não. Dá-lhe momentos de expansão emocional, escolhendo pontos-chave onde a música dilata o tempo e o sentimento. Mas é, de facto, uma obra inteiramente cantada.

E a ópera é isso mesmo: teatro cantado, em que o tempo se alarga com a música. Às vezes, a música e o canto sobrepõem-se à palavra, mas a palavra continua a ter um peso enorme.

A escolha de Julie

Ela é uma grande heroína e representa a luta de quem tem de transgredir para conseguir vencer obstáculos e ir contra o que está estabelecido. Felizmente, às vezes as coisas correm melhor do que correram para a Julie. Todo esse lado trágico é muito forte e também nos faz pensar. Vemos no palco histórias que nos fazem refletir sobre a vida real — e percebemos que, na vida, as pessoas podem, de facto, fazer diferente, podem lutar por outras coisas. Os espetáculos são assim: devolvem-nos a vida. Estamos a ver algo que não é exatamente real, mas que foi inspirado na vida, porque, como se costuma dizer, a realidade ultrapassa sempre a ficção.

Temos um papel e podemos ser ativos, podemos tentar perceber o que levou a Julie a sentir-se assim, a perguntar “porque é que ela se matou?”. Talvez tenha sido porque não aguentava a hipocrisia à sua volta. Há pessoas que lidam melhor com isso, outras que não conseguem e preferem acabar com uma situação de ruptura total, que pode ser mesmo acabar com a vida. Ou então podem simplesmente virar costas, fugir.

Hoje em dia, as pessoas podem divorciar-se — coisa que antes não podiam. Isso é um sinal de liberdade, uma forma de ruptura: “Eu não quero isto”. E é importante ter essa liberdade para dizer: “Isto não está a correr bem. Eu não quero isto para mim. Vou procurar algo que faça sentido, que seja o que deve ser.”

Fotos ensaios. © Susana Paiva.
Fotos ensaios. © Susana Paiva.
Fotos ensaios. © Susana Paiva.
Fotos ensaios. © Susana Paiva.
Fotos ensaios. © Susana Paiva.
Fotos ensaios. © Susana Paiva.
Fotos ensaios. © Susana Paiva.
Fotos ensaios. © Susana Paiva.

Sobre Philippe Boesmans


Philippe Boesmans (1936–2022), depois de vencer o primeiro prémio de piano no Conservatório de Liège, abandonou o piano para se dedicar à composição como autodidata. Inicialmente muito influenciado pelo serialismo, cedo sentiu a necessidade de ultrapassar os seus limites e exclusões. Sem nunca rejeitar esse legado recente, desenvolveu uma linguagem musical profundamente pessoal, centrada numa comunicação significativa com o público.
A carreira de Boesmans foi notável. Em 1971, recebeu o Prémio Italia pela obra Upon La-Mi, tendo participado regularmente em importantes festivais de música contemporânea (como os de Darmstadt, Royan, Zagreb, Avignon, Almeida, Estrasburgo, Montreal, Ars Musica, Salzburgo e IRCAM, entre muitos outros), além de ter realizado numerosas gravações. Os CDs de Concerto pour violon e Conversions arrecadaram seis prémios, incluindo o Koussevitzky International Recording Prize e o Prémio da Academia Charles Cros.
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Estabelecido em Bruxelas, assumiu em 1971 o cargo de produtor na emissora de televisão RTBF, vindo a tornar-se compositor residente em La Monnaie, onde Gérard Mortier lhe encomendou várias obras, incluindo La Passion de Gilles (1983), os Trakl-Lieder (1987) e a orquestração de L’Incoronazione di Poppea de Monteverdi, em 1989. A sua relação com La Monnaie manteve-se frutífera: em 1993, Bernard Foccroulle encomendou uma nova ópera, Reigen, encenada pelo próprio autor Luc Bondy, a partir da peça homónima de Arthur Schnitzler. Nesse mesmo ano, a produção foi apresentada em Estrasburgo, seguindo para La Monnaie e para o Théâtre du Châtelet em 1994, e para a Ópera de Frankfurt em 1995. Reigen continuou a ser apresentada ao longo da década de 1990, nomeadamente na Ópera de Nantes (1997), no Wiener Opern Theatre (1997), em Braunschweig (1998) e em Amesterdão (1999).

Numa colaboração contínua com Luc Bondy, Boesmans criou Wintermärchen para La Monnaie, em 1999. Esta produção teve igualmente grande sucesso, com apresentações no ano seguinte na Ópera de Lyon, no Châtelet e no Liceu de Barcelona, em 2004. Seguiram-se outras apresentações em Braunschweig (Março de 2001) e Viena (Fevereiro de 2002). Em Novembro de 2000, a Deutsche Grammophon lançou o CD de Wintermärchen.

Em La Monnaie, a 8 de Março de 2005, teve lugar a estreia mundial da ópera Julie, baseada em Fröken Julie de August Strindberg. Esta ópera em um ato teve reposições em 2005, no Wiener Festwochen (Maio) e no Festival d’Aix-en-Provence (Julho). Em 2006, houve apresentações em Braunschweig e, em 2007, a companhia Music Theatre Wales fez uma digressão pelo Reino Unido.

Philippe Boesmans recebeu o Prix Arthur Honegger em Dezembro de 2000 e o Prix Musique da SACD em Maio de 2004.

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Sobre BEYRA Laboratório Artístico + Ensemble Orquestral da Beira Interior


O BEYRA Laboratório Artístico é uma plataforma inovadora dedicada ao apoio a jovens músicos em início de carreira, criando oportunidades profissionais de desenvolvimento artístico na região da Beira Interior. A forte adesão do público e o crescente interesse de parceiros institucionais comprovam a relevância deste projeto numa região de enorme potencial económico, social e cultural, mas que ainda carece de estruturas que promovam a profissionalização e a fixação de talento artístico. É através do BEYRA que nasce o Ensemble Orquestral da Beira Interior, que reúne jovens músicos dos 18 aos 27 anos e assume-se como um motor da criação contemporânea, promovendo estreias e encomendas a compositores como Carlos Azevedo, Luís Tinoco, Luís Cipriano, Vasco Mendonça, Pedro Lima, Carlos Caires e Sara Ross, e colaborando com solistas de renome, como António Rosado, João Barradas e Filipe Quaresma. O Ensemble Orquestral da Beira Interior constitui assim uma plataforma profissional e formativa para jovens músicos, contribuindo ativamente para o desenvolvimento cultural e artístico no interior de Portugal.
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Estabelecido em Bruxelas, assumiu em 1971 o cargo de produtor na emissora de televisão RTBF, vindo a tornar-se compositor residente em La Monnaie, onde Gérard Mortier lhe encomendou várias obras, incluindo La Passion de Gilles (1983), os Trakl-Lieder (1987) e a orquestração de L’Incoronazione di Poppea de Monteverdi, em 1989. A sua relação com La Monnaie manteve-se frutífera: em 1993, Bernard Foccroulle encomendou uma nova ópera, Reigen, encenada pelo próprio autor Luc Bondy, a partir da peça homónima de Arthur Schnitzler. Nesse mesmo ano, a produção foi apresentada em Estrasburgo, seguindo para La Monnaie e para o Théâtre du Châtelet em 1994, e para a Ópera de Frankfurt em 1995. Reigen continuou a ser apresentada ao longo da década de 1990, nomeadamente na Ópera de Nantes (1997), no Wiener Opern Theatre (1997), em Braunschweig (1998) e em Amesterdão (1999).

Numa colaboração contínua com Luc Bondy, Boesmans criou Wintermärchen para La Monnaie, em 1999. Esta produção teve igualmente grande sucesso, com apresentações no ano seguinte na Ópera de Lyon, no Châtelet e no Liceu de Barcelona, em 2004. Seguiram-se outras apresentações em Braunschweig (Março de 2001) e Viena (Fevereiro de 2002). Em Novembro de 2000, a Deutsche Grammophon lançou o CD de Wintermärchen.

Em La Monnaie, a 8 de Março de 2005, teve lugar a estreia mundial da ópera Julie, baseada em Fröken Julie de August Strindberg. Esta ópera em um ato teve reposições em 2005, no Wiener Festwochen (Maio) e no Festival d’Aix-en-Provence (Julho). Em 2006, houve apresentações em Braunschweig e, em 2007, a companhia Music Theatre Wales fez uma digressão pelo Reino Unido.

Philippe Boesmans recebeu o Prix Arthur Honegger em Dezembro de 2000 e o Prix Musique da SACD em Maio de 2004.

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FICHA TÉCNICA

FOTOS
Susana Paiva

ENTREVISTA
Inês Lampreia

EDIÇÃO
Carolina Luz

REVISÃO DE CONTEÚDOS
Catarina Medina

DESIGN E WEBSITE
Studio Macedo Cannatà & Queo