"EU NÃO TENHO MEDO DA ESCULTURA"

«Toda a obra de António Bolota é uma questão de vida e de morte. Sabemos que a escultura está, desde a Pré-História, ligada à questão da morte e das suas liturgias. A prática deste artista faz recorrentemente homenagem a essa tradição da escultura como o mais poderoso de entre todos os memento mori. Mas o seu contrário é também verdade: a sua obra é, muitas vezes, orientada para a construção de momentos que nos confrontam com os limites da nossa sensibilidade e com a dimensão relativa (muito relativa, mesmo) do nosso corpo no mundo. Mais do que a forma, o conceito ou o processo, os objetivos do seu trabalho passam pela instauração controlada de vivências de perigo, de espanto ou de incredulidade; por forçar os estados de alerta que dessas vivências decorrem e através dos quais nos apercebemos, com outra força e acutilância, da fragilidade do aglomerado de carne, sangue, linfa e osso que nos constitui.

É por essa razão, creio, que tantas das suas obras recorrem a uma escala monumental e a uma espécie de impulso ilusionista. O desafio da nossa credulidade, sobretudo por intermédio da subversão reiterada das regras e do funcionamento das leis da física, é a estratégia que lhe permite abrir uma fissura no contínuo da experiência, interrompe-la com uma questão que é do domínio do fenomenológico – o que equivale a dizer que é do domínio das coisas primeiras, das mais diretas, das supostamente mais seguras. Face à improbabilidade de muitas das suas obras, não podemos senão desconfiar do que vemos. E desconfiar do que se vê é uma espécie de desfibrilação do sistema percetivo: um choque que pretende resgatá-lo ao torpor do quotidiano e devolvê-lo, uma vez mais, à vida plena.

Trata-se, portanto, de exacerbar a perceção por via de uma realidade aumentada. As obras de António Bolota são dispositivos analógicos de realidade aumentada. A sua função é criar as condições para que o aparentemente banal nos confronte com o impossível e nos ponha a lidar com a estridência que se produz sempre que os nossos olhos veem algo que o nosso corpo não pode crer.

As peças de António Bolota são feitas para serem experienciadas mais do que uma vez. Olhá-las é determinante, mas significa pouco. É preciso vivê-las, percorrê-las, habitá-las. No fundo, é preciso cumpri-las repetidamente. Não necessariamente pelo que essa repetição nos possa revelar sobre elas e sobre o universo do artista, mas pelo que nos pode dizer sobre nós mesmos: sobre o nosso corpo e as suas medidas, sobre o modo como enfrentamos desafios e o que deles fazemos, sobre a nossa capacidade para acolher a poética da nossa finitude partilhada, sobre o assombro da beleza escondida em tanto do que já está à vista no nosso quotidiano comum, e sobre a capacidade de nos deixarmos transformar a partir de uma experiência artística. No final de contas, é isso que verdadeiramente parece interessar em muitas das obras de António Bolota: a possibilidade de incorporar a vertigem, de registar no fio contínuo e cumulativo da experiência a conquista do desconforto que a passagem para o lado de lá implica, de assumir o custo desse desafio e colher os frutos de ter escolhido viver mais.»

 

Bruno Marchand

Excerto de «Incorporar a vertigem – A fenomenologia do improvável», texto a publicar no catálogo da exposição.

© Vera Marmelo
© Vera Marmelo
António Bolota, Mão-de-Obra (2021) / © Vera Marmelo
António Bolota, Mão-de-Obra (2021) / © Vera Marmelo
António Bolota, Mão-de-Obra (2021) / © Vera Marmelo
António Bolota, Mão-de-Obra (2021) / © Vera Marmelo
António Bolota, Mão-de-Obra (2021) / © Vera Marmelo
António Bolota, Mão-de-Obra (2021) / © Vera Marmelo
António Bolota, Mão-de-Obra (2021) / © Vera Marmelo
António Bolota, Mão-de-Obra (2021) / © Vera Marmelo
António Bolota, Mão-de-Obra (2021) / © Vera Marmelo
António Bolota, Mão-de-Obra (2021) / © Vera Marmelo
António Bolota, Mão-de-Obra (2021) / © Vera Marmelo
António Bolota, Mão-de-Obra (2021) / © Vera Marmelo
António Bolota, Mão-de-Obra (2021) / © Vera Marmelo
António Bolota, Mão-de-Obra (2021) / © Vera Marmelo

António Bolota em voz própria

FICHA TÉCNICA

CURADORIA
Bruno Marchand

DIREÇÃO DE PRODUÇÃO
Mário Valente

PRODUÇÃO
Sílvia Gomes
Fernando Teixeira

ASSISTENTE DO ARTISTA
Diego Novo

MONTAGEM
Equipa da empresa António Bolota – Gestão e Coordenação de Obras, Lda. 
Coordenação: António Mosqueira

APOIOS

ArtWorks
SECIL

AGRADECIMENTOS
Coleção Norlinda e José Lima