A VIDA NO PALCO

A ideia de performance tem sido uma subtil, mas constante força, no trabalho de Peter Wächtler (Hannover, 1979). Os desenhos, animações e esculturas que criou no início da sua carreira eram frequentemente protagonizados por animais que, como personagens de uma fábula, desempenhavam ações humanas: ações que pressupunham um público, um espectador ou uma testemunha. Dançando, trabalhando ou agraciando o observador com longos monólogos confessionais, criaturas como lobos, ratos, crocodilos ou dragões transformavam-se em seres inofensivos e aprazíveis, donos de uma bonomia, de um humor e de uma atração quase irresistíveis.
Não era raro, contudo, que o olhar divertido e complacente que estes seres à primeira vista suscitavam fosse lentamente substituído por uma certa inquietação – pela descoberta de que, por trás da sua aparência fofinha, eles manifestavam sinais de neuroses, desencantos e frustrações deveras familiares. Como que dando corpo às nossas pequenas ansiedades e desilusões coletivas, estes personagens e as suas ações eram o espelho das nossas angústias existenciais latentes. E de uma certa melancolia e inépcia social, também.
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Mais recentemente, o trabalho de Wächtler tem vindo a prescindir do recurso a animais, mas a sua atenção permanece focada na exploração do desconforto provocado por um persistente sentimento de desadequação. Os seus personagens atuais são frequentemente sobrenaturais, imunes ao tempo e às suas agruras, mas nem por isso mais capazes de estabelecerem laços afetivos e emocionais e de operarem de forma funcional no seu entorno. O mundo é-lhes alheio; o Outro, um enigma. Nenhum deles deixa, porém, de desempenhar o papel que lhes compete nas narrativas que Wächtler orquestra e nas quais surgem, a espaços, vislumbres fugazes de redenção. 
Bruno Marchand, Curador
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© Vera Marmelo - Culturgest
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Neurociência é, no mínimo, uma ciência que não me interessa de todo; a verdade é que me assusta. Quando me aparece um artigo com Neurociência no título, ponho o jornal de lado. NÃO sou sentimentalmente desequilibrado, NEM sou um saco de emoções tépidas e descontroladas, incapaz de aguentar a frieza da ciência. Já ouvi milhares de palestras na minha vida, e dei mais ainda do que isso quando vivia em Paris. Mas a palavra Neurociência causa-me um real desconforto.  Uma coisa do género: Uma festa na praia vista do mar. Vêem-se as luzes e os cocktails, pode ouvir-se música animada, ver-se pessoas a dançar e beijos sob as lanternas. Então a música distorce-se estranhamente e transita, não para outro tema, mas para o balanço nocturno e sagrado do mar; esse mar que procura nunca entender coisa alguma do que eu jamais sentirei. É o que sucede quando leio a palavra Neurociência. E é uma coisa relativamente nova. Antes tinha a mesma impressão quando me diziam: "Estou muito preocupado consigo". Recordo esse sentimento com clareza. A mesma festa na praia; a música começa a atenuar e a soar estranha, a batida começa a ficar pesada. As luzes desaparecem e nada existe para além da escuridão e do mar que procura não entender. Acho que toda a gente tem palavras que os assustam, e não há problema. Pode confiar em mim. Eis o que eu aprendi com isto: tudo o que é comentado cientificamente, todos os resultados, é resultado de manipulação. Manipulação de materiais, de pensamentos, de palavras. Um carro é o resultado de manipulação e uma casa também o é, eu sou resultado de manipulação assim como o lavabo. Então? Não há qualquer problema, mas quando se pensa no assunto há que admitir que estou certo e que nada é deixado ao acaso e que não há lugar para esconder. Exceto, e com certeza já se esperava esta conclusão, o mar que procura nunca entender coisa alguma do que eu jamais sentirei.

Peter Wächtler, 2019

© Vera Marmelo - Culturgest
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Digamos, por agora, que sempre que sai de casa há uma música no ar que só a si é dado ouvir. Essa música acompanha-o todo o dia, e há ainda uma variante noturna e um remix ocasional que soa quando se sente feliz. Não é um zumbido ou um sussurro; é uma música completa que começa com uma batida muito seca, com um saxofone a soar lá para o fim. Essa música é sua. Mais ninguém pode ouvi-la; é a única pessoa que pode cantarolá-la, livre, em voz alta, num palco real ou naquele que figura no seu sonho. Agora, essa música começa a soar diferente. Fecha a porta, põe a mochila e, de repente, tudo, menos a música, fica tão diferente. Tudo está bem por um momento. Casos há em que a música retorna à sua versão anterior. A música não fica apenas distorcida, desvanece.

Ou está a soar naquele volume maçador que as pessoas usam nos seus carros. Um volume quase inaudível, como se uma toupeira lhe estivesse a urinar nos ouvidos. Não. Não é urinar. É como se uma toupeira lhe estivesse a segredar a data da sua morte e, simplesmente, não conseguisse entender. As toupeiras são cegas não são mudas, eu sei, mas a sua voz é muito baixa. Seja de que maneira for, a sua música é entoada. Vai trabalhar, senta-se, e então a porta é franqueada pelas suas pessoas que entram de peito nu, intoxicadas e transpiradas, e cantam a sua música em voz alta, às 11 da manhã, à hora em que normalmente se senta para trabalhar; e é tudo tão alto que o seu cérebro se enche imediatamente de acrimónia sentimental. Alerta vermelho, sirenes, luz vermelha a piscar. Treta. Não há acrimónia. Cantam tão alto que não consegue ouvir a toupeira a segredar-lhe a data da sua morte. Não. Cantam alto e têm longas barbas brancas, e não pode trabalhar nem ir para casa.

Essa música, quer possa ainda ouvi-la ou não, não é a sua alma. Isso é outra coisa. É qualquer coisa de que gostava muito, que lhe pertencia só a si, e que agora se foi para sempre sem que possa falar sobre ela seja com quem for. Até aqui tudo bem. Só fica mau, mas mesmo mau, quando quer que outras pessoas sintam o mesmo. Por vezes, raramente, no máximo uma vez por ano, admito, quero que outras pessoas sintam o mesmo. Na verdade, houve períodos em que queria isso o tempo todo. Diariamente. Mas isso foi há muito tempo, quando ainda vivia no Porto. Ainda assim: as pessoas continuam a dizer-me que estão preocupadas comigo. Ponto. Também eu, estou preocupado com as pessoas.

Peter Wächtler, 2019

FICHA TÉCNICA

CURADOR
Bruno Marchand

DIRETOR DE PRODUÇÃO
Mário Valente

PRODUÇÃO
Sílvia Gomes
Fernando Teixeira

EDIÇÃO
Carolina Luz

VÍDEO E TEXTO
Peter Wächtler

TRADUÇÃO
Paula Tavares dos Santos

FOTOGRAFIA
Vera Marmelo

REVISÃO DE CONTEÚDOS
Helena César

DESIGN E WEBSITE
Studio Macedo Cannatà & Queo

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