A ARTE COMO DÁDIVA

Fracture Empire é a primeira exposição do artista visual Samson Kambalu em Portugal e, ao mesmo tempo, a apresentação mais completa da sua obra até à data. O recém-vencedor do Quarto Plinto, Trafalgar Square, um dos prémios de arte pública mais famosos do mundo, estará na Culturgest para um programa complementar que inclui uma conferência e um debate.

+ Continuar a Ler

Biografia

Samson Kambalu (Maláui, 1975) licenciou‑se na Universidade do Maláui em Belas-Artes e Etnomusicologia. É mestre em Belas-Artes pela Nottingham Trent University, doutorado pelo Chelsea College of Art and Design e recebeu bolsas de pesquisa da Yale University e do Smithsonian Institute. Das suas recentes exposições individuais, destacam-se as ocorridas na Modern Art Oxford, na Peer UK, em Londres, e no Kunstmuseum Mu.zee, Ostende (com Vincent Meessen). Participou em diversas bienais e projetos congéneres em todo o mundo, incluindo a Bienal de Atenas (2021), a Bienal de Dakar (2014, 2016), o Festival Internacional de Arte de Tóquio (2009) e a Bienal de Liverpool (2004, 2016). Foi incluído no All the World’s Futures, exposição central da Bienal de Veneza de 2015, com curadoria de Okwui Enwezor. Mais recentemente, Kambalu foi Consultor Cultural do Maláui para o filme The Boy Who Harnessed the Wind, traduzindo o roteiro para Chichewa e figurando como o lojista Joe Godsten. É professor associado de Belas‑Artes na Ruskin School of Art e Fellow no Magdalen College da Oxford University.

- Resumir
Samson Kambalu nasceu no Maláui, em 1975, numa família de oito irmãos. Uma das mais importantes posses da família durante a sua infância era um armário de livros ao qual chamavam “o díptico.” O díptico albergava uma seleção heterogénea de livros que, no seu conjunto, mapeavam uma parte nada desprezível do conhecimento e do pensamento universal – uma espécie de enciclopédia portátil de fontes primárias. Kambalu mergulhou naquela biblioteca não só como quem tem uma curiosidade inesgotável e uma apetência clara pelo pensamento abstrato, mas também como quem sabia que o mundo era muito maior do que o Maláui, mas que não tinha outros meios para o explorar.
+ Continuar a Ler

No díptico, o jovem Kambalu encontrou mitos e religiões, ciência e filosofia, antropologia e ocultismo. Assombrou-se por Nietzsche e procurou respostas para as grandes questões da vida. Fundou uma religião – o Holyballism –, encontrou para ela o mantra perfeito – exercise and exorcise – e decidiu ser artista visual, mas apenas após perceber que ser artista marcial ou estrela Pop não estava ao seu alcance. Não que não tenha tentado: emulou, com sucesso, os movimentos de Bruce Lee e de Michael Jackson que via, escondido, em sessões de cinema ao ar livre. Foi aí que se deixou contaminar, também, por uma dada estética cinematográfica, feita de filmes projetados em condições rudimentares e fortemente editados para deixar apenas os momentos de ação. Foi aluno na Kamuzu Academy, a escola secundária de elite com que o “Life President”, Hastings K. Banda, quis imitar Eton em Chimphepo, e, aquando do regresso apoteótico do aluno brilhante à terra onde crescera, submeteu-se ao Gule Wamkulu, um ritual de passagem das tribos Chewa, governado pelas ideias de excesso, oferenda, máscara e jogo.

Fez um curso superior de artes visuais e etnomusicologia e abriu um ateliê onde recebia clientes e outros interessados na sua obra. Susan foi uma dessas visitas e, apesar de esta lhe ter matado o cão inadvertidamente numa marcha atrás, apaixonaram-se e decidiram viver juntos no Reino Unido em 2001. Escreveu um livro de memórias endossado por Gary Indiana e foi selecionado por Okwi Enwezor para a Bienal de Veneza de 2015. Foi processado por um famoso situacionista e ganhou, já em 2021, a última edição do Fourth Plynth, um prestigiado concurso de escultura pública em Inglaterra, cuja proposta abre esta exposição. Samson Kambalu é um dos mais singulares tradutores da cultura sincrética africana para os olhos e para a razão ocidentais. É também um intérprete e um crítico da história conturbada destes dois blocos. Fracture Empire é a apresentação mais completa da sua obra até à data.

 

Curadoria: Bruno Marchand

- Resumir

O ativista moderno 

 
John Chilembwe (1871-1915) foi um pan-africanista e reverendo batista. Figura cimeira na resistência ao colonialismo na Niassalândia (Malawi), opôs-se ao tratamento dos africanos em plantações detidas por europeus e insurgiu-se contra a incapacidade do governo colonial de promover os avanços sociais e políticos prometidos. "Foi o primeiro africano a tornar-se num africano moderno, além das divisões tribais... É uma figura da modernidade do Malawi e sempre me inspirou como artista”, declarou Kambalu. 
Para a competição inglesa do Quarto Plinto, Samson Kambalu inspirou-se na subversiva fotografia de Chilembwe e John Chorley, missionário europeu. O estudo para a escultura, Antelope, é o início de uma viagem por este império fracturado da mente e interesses de Kambalu.
©DR
©DR
@Vera Marmelo
@Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
A fotografia original terá sido reproduzida e distribuída na antecâmara de uma tentativa de rebelião, encabeçada por Chilembwe. À altura era proibido a um negro usar chapéus na presença dos colonizadores. Chilembwe viria a ser assassinado cerca de um ano mais tarde e a sua igreja destruída na sequência da revolta falhada que ele próprio liderara. A escultura cujo modelo à escala aqui apresentamos foi uma das propostas vencedoras do Quarto Plinto – o mais destacado concurso de escultura pública do Reino Unido. Ficará instalada em Trafalgar Square, em Londres, durante os próximos dois anos.

O Cinema do Excesso

Kambalu pede emprestada a expressão "Nyau" ao Chewa, a língua nacional do Malawi, que significa "excesso", para intitular o conjunto das suas curtas-metragens. O Cinema Nyau resulta de performances espontâneas desempenhadas pelo artista em resposta ao local específico em que decorrem. A sua génese encontra inspiração no Gule Wamkulu – simultaneamente um culto secreto e uma dança ritual praticada pelo povo Chewa, uma tribo Bantu da África Central e Meridional, e o maior grupo étnico do Malawi. Para Kambalu o cinema é uma ocasião para o pensamento crítico e atividades soberanas - atos peculiares, lúdicos e muitas vezes transgressivos com o objetivo de expressarem a subjetividade radical com a qual o artista vê o mundo.

Situacionismo e Sanguinetti

©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
©Vera Marmelo
Samson Kambalu 
©Vera Marmelo
Samson Kambalu 
©Vera Marmelo
Oiça um excerto da recriação deste julgamento n'O Projeto Invisível

Porquê Situacionismo? Porquê Sanguinetti Breakout Area? Nyau

Por causa da oferenda. Foi nesta economia que cresci no Malawi. O Malawi é o país mais pobre do mundo. Não vejo isso como uma coisa negativa.

O Malawi continua em prestation1. O país está naturalmente predisposto a resistir ao capital. No Malawi temos a Nyau, uma cultura toda ela assente não nos bens, mas na oferenda. Filósofos e antropólogos, de Emerson a Derrida, observaram quão difícil é dar uma oferenda. Em Assim Falava Zaratustra, Nietzsche pondera que é preciso ter uma tremenda habilidade para dar uma oferenda. Emerson considerou que a oferenda tem o efeito de fazer com que o recipiente se sinta inferiorizado, e que gera ressentimento quando não é correspondida.

Mas o que é uma oferenda? É, seguramente, algo mais do que um presente.
+ Continuar a Ler

Bataille vê a oferenda como um ‘excesso’ – o desbaratar de tempo e recursos em excesso. Dar uma oferenda é ser como um deus – o pródigo e desinteressado Sol lá no alto. Para Bataille, é por isso que quem oferece se dá ares de superioridade perante quem recebe. Hyde observa como a oferenda une as pessoas, em contraste com os bens que as separam. A oferenda ajuda a sociedade a respirar e a gerar intimidade. Uma sociedade que não dá uma oferenda é uma sociedade inflada. Na minha tribo, os Chewa, o excedente, seja tempo ou recursos, não é vendido; em vez disso, é gasto em atividades "inúteis", como são as das artes, as fúnebres, as de iniciação, etc. – tudo encabeçado por máscaras Nyau.

O papel da máscara Nyau é orquestrar a dádiva de oferendas – o desbarato do excesso de tempo e riqueza –, é Gule Wamkulu, literalmente o ‘Grande Jogo’. Gule Wamkulu é a criação de 'Situações', em que uma oferenda pode ser dada, sem incorrer numa dívida. O jogo ameniza a mesquinhez que pode ocorrer na troca de presentes em situações mais sérias. Num festival Nyau é possível, em jogo, dar e receber uma oferenda sem sentir culpa ou dívida. No frenesi do festival Nyau, é possível ser-se generoso como o Sol – desinteressadamente.

Foi Nyau que me levou aos Situacionistas. Pareceu-me que esse movimento tinha compreendido o significado da oferenda. Desde a sua fundação em 1957, que o grupo adoptou um modelo económico não restritivo em confronto aberto com o modelo dominante do capital e dos valores de acumulação. Os Situacionistas consideravam potlatch2 como a melhor maneira de abordar a criatividade, e até a própria vida. Tudo seria dado desinteressadamente, e tudo era partilhado. Desenvolveram engenhos criativos de jogo nos quais a oferenda podia ser dada sem incorrer numa dívida – o desvio, a psicogeografia e o urbanismo unitário. A linguagem dos Situacionistas era-me familiar, já que cresci em sociedades de oferenda do Malawi, como a minha tribo, os Chewa.

Desde 2011, que o meu doutoramento trata o modo como a problemática da oferenda anima diferentes aspetos da minha prática artística. Empreguei o Situacionismo como modelo para trazer a dádiva de oferendas da minha tribo para a minha prática artística contemporânea. O Urbanismo Unitário, onde uma cidade é concebida para jogo ao invés de utilidade, lembra a Cidade Chewa Nyau, mzinda3; o desvio é na verdade o Chewa mdulo, uma transgressão ritual do cânone e da norma para abrir caminho a novas perspetivas e paixões de vida.

Quando me candidatei a uma bolsa de Verão em Yale tinha o propósito de estudar Psicogeografia na obra de William Blake e na Arte Romântica Britânica. A Psicogeografia, e o estudo que faz do modo como o ambiente pode afetar a psicologia do indivíduo, parecia-me uma máscara em versão moderna, ainda que o método funcione como uma forma de psicoterapia. O disfarce e o desvio Nyau são certamente uma catarse. Usei a Psicogeografia para entender os novos ambientes por onde viajei desde que, há 15 anos, deixei o Malawi.

Foi a partir desta prática que desenvolvi o Cinema Nyau, performances site specific registadas e produzidas em filme. Abordo a criação do Cinema Nyau como se de disfarce se tratasse; como se, em vez de usar máscara, confrontasse o ambiente com uma ideia de filme. A Psicogeografia está abundantemente retratada em William Blake e na Arte Romântica; o meu objetivo em Yale era estudar essa evidência e ver de que modo poderia inspirar a minha prática de cinema Nyau. Estudei Blake e fiz filmes em Yale, mas a pesquisa sobre matéria Situacionista que fiz na biblioteca da universidade conduziu-me a Sanguinetti4 – primeiro uma fotografia, depois um arquivo inteiro. A controvérsia gerada pelo modo como a obra foi comprada inspirou a minha aproximação ao arquivo.

Parecia que Sanguinetti tinha capitulado nos últimos anos. Eis que um dos defensores acérrimos da economia da oferenda leiloava na Christies os seus artigos a “quem dá mais” – a Beinecke Library, Universidade de Yale. Comecei a desviar o arquivo. Ainda acredito na oferenda. Empreguei a técnica Situacionista do détournement5da "fotografia graffiti" para desviar, não apenas os documentos de Sanguinetti, por meio de jogos criativos, mas também a arquitetura académica da Biblioteca Beinecke. Os documentos de Sanguinetti foram recolhidos e fotografados.

Não fui o primeiro a abordar a academia como um modo de jogo e de oferenda pelo uso do détournement. O filósofo holandês Huizinga traçou, em jogo, a origem da academia, referindo, como protótipo, a atitude retórica dos sofistas em relação ao conhecimento. Quando Okwui Enwezor viu o meu Cinema Nyau na Stevenson Gallery, em Joanesburgo, e me proôs um trabalho para a Bienal de Veneza 2015, decidi levar os documentos de Sanguinetti de volta para Itália. Foi um desvio conceptual do arquivo de volta a Itália – uma extensão do détournement que tinha iniciado na Biblioteca Beinecke. Lembrei-me do modo como o governo francês teve que intervir para impedir que Yale levasse o arquivo de Guy Debord para a América, antes que a Universidade tivesse, finalmente, sucesso em adquirir matéria Situacionista através de Sanguinetti, um dos últimos membros da Internacional Situacionista (IS).

Talvez Sanguinetti tivesse precisado do dinheiro. Levar o arquivo de volta para a Itália seria a minha oferenda a Sanguinetti. Instalei o trabalho no Arsenale, inspirado no pouco conhecido jogo de tabuleiro – o Jogo da Guerra – que Guy Debord inventou depois de dissolver a IS para permitir uma abordagem mais inclusiva e estratégica da subversão e das situações, e incorporei uma carta de protesto de Bill Brown, o tradutor de Sanguinetti, sobre a venda do arquivo. À semelhança de De Certeau ou Lefebvre, eu acreditava que nas franjas do mundo comercial ainda era possível dar uma oferenda. A Sanguinetti Breakout Area é composta de partes discordantes, mas no calor das trocas e das traições, a oferenda situacionista ainda podia ser passada – de Guy Debord a Sanguinetti, de Sanguinetti a Bill Brown, de Bill Brown a Samson Kambalu, de Samson Kambalu a Veneza e ao mundo. 

Ainda que no détournement do arquivo de Sanguinetti haja sátira e paródia decorrentes da sua aparente traição ao movimento situacionista, Sanguinetti Breakout Area é também um trabalho optimista que procura sustentar ideias de viver a vida real através da economia da oferenda que os Situacionistas defenderam, e que eu, vindo de uma sociedade de prestation como o Malawi, certamente gostaria de apoiar.

Samson Kambalu 
20.10.15


_________________

1     Prestation – Lei civil: a execução/cumprimento de algo que é devido por obrigação. [NdT]
2     Potlatch – Comportamento cultural mais ou menos formal, por vezes sob a forma de cerimónia, baseado na oferenda. [NdT]
3    Mzinda – ‘Cidade’ na língua Chichewa, a língua falada pelos Chewa e uma das mais faladas no Malawi. [NdT]
4     Sanguinetti, Gianfranco (n. Julho 16, 1948, Pully, Suiça) é autor e membro da Internacional Situacionista (IS), um movimento político e artístico. [NdT]
5    Détournement  – “(…) Integração de produções artísticas actuais ou do passado numa composição superior do meio. Neste sentido, não pode haver pintura ou música situacionista, mas sim um uso situacionista destes meios. (…)”  in Guy Debord, Internationale situationniste, Numéro 1, p. 13, Juin 1958. [NdT]
 

- Resumir
Nesta palestra Samson Kambalu examina como sua abordagem da arte se relaciona com o cinema pós-colonial e a tradição da máscara Nyau do Malawi. A palestra inclui a exibição de seus curtas-metragens e traça a jornada do artista desde sua criação no Malawi até à sua comissão do Quarto Plinto, Antelope.
Samson Kambalu (Malawi, 1975) conversará connosco acerca da sua produção fílmica em relação ao uso de máscaras nos rituais da irmandade Nyau, uma sociedade secreta do Malawi onde a prática da oferenda é uma questão central. Uma oportunidade de ouvir um dos mais provocadores artistas do panorama internacional. 
A partir das questões levantadas em Fracture Empire, Ricardo Noronha, investigador na área da história social e económica, com uma pesquisa que passa também pelo Situacionismo, um movimento de referência para Kambalu; Raquel Shefer, realizadora e programadora, professora na Universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3, com investigação na área do cinema africano e da afrodiáspora e Catarina Laranjeiro, vão debater sobre situacionismo, cinema e outras histórias.
FICHA TÉCNICA

CURADORIA
Bruno Marchand

DIREÇÃO DE PRODUÇÃO
Mário Valente

PRODUÇÃO
Sílvia Gomes
Fernando Teixeira

MONTAGEM
Edgar Pires
Pedro Palma
Xavier Ovídio
Fabrício Soares
Michael Bennett

EDIÇÃO
Inês Bernardo

REVISÃO CONTEÚDOS
Catarina Medina

DESIGN E WEBSITE
Studio Maria João Macedo & Queo

FOTOGRAFIA
Vera Marmelo

AGRADECIMENTOS
Gallery Kate MacGarry, London
Modern Art Oxford
Susan Kambalu