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A VIDA MAIOR QUE O TEMPO

LONGEVIDADE:
REGENERAÇÃO

No seu percurso evolutivo, a espécie humana não se especializou no processo de regeneração celular. O corpo envelhece e o nosso sistema de conservação da vida focou-se mais na elaboração de um sistema de proteção a agentes infeciosos do que na regeneração. Mas a ciência, aprendendo com a capacidade de outras espécies, está a manusear esta tendência biológica, desenvolvendo novas técnicas para trazer a capacidade regenerativa para o organismo humano. Este é um recurso terapêutico já utilizado em vários problemas de saúde, inclusive em doenças virais – como, por exemplo, os tratamentos desenvolvidos contra o HIV.

Não poderemos regenerar eternamente, mas as investigações que se estão a desenvolver nesta área podem contribuir para que uma vida longeva seja uma vida melhor. É sobre este tema que versa a última conferência deste ciclo.

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PARCERIA CIENTÍFICA

  • Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa (IST)
    Nova SBE Health Economics and Management KC

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LONGEVIDADE: REGENERAÇÃO
23 JUN 2020 14:00–18:00

Português + Língua Gestual Portuguesa LGP
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O rabo da lagartixa
 

O que é que o rabo da lagartixa tem que ver com isto?

No reino animal, a capacidade de regenerar partes do corpo varia consideravelmente entre as espécies, assim como a suscetibilidade ao envelhecimento degenerativo. O estudo de espécies animais com capacidades regenerativas excepcionais e/ou senescência insignificante, permite conhecer o que estes animais possuem e que falta nos seres humanos.

Porque é que a orelha de Van Gogh não voltou a crescer?

A regeneração pode retardar o envelhecimento?

António Jacinto


Investigar a regeneração nos animais que têm essa capacidade e conhecer melhor as propriedades das célulasestaminais e senescentes, é essencial para que a medicina regenerativa torne possível a reversão de aspetos negativos das doenças e do envelhecimento.

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Alguns vertebrados como peixes e anfíbios conseguem regenerar completamente órgãos e tecidos quando sofrem lesões, mas nos humanos e na maioria dos mamíferos as possibilidades de regeneração completa e funcional de um órgão são muito limitadas. Nos mamíferos, uma lesão leva normalmente à cicatrização, uma resposta otimizada para o combate a infeções e à recuperação estrutural rápida, embora raramente conduza à regeneração perfeita. Por contraste, nas salamandras, que são um dos animais anfíbios muito estudados nesta área, a perda de uma pata resulta no crescimento de uma nova pata completamente funcional. (...) Até que ponto essa capacidade pode retardar o envelhecimento? A resposta depende da espécie a que nos estejamos a referir. Por exemplo, em algumas espécies de planárias (um tipo de verme achatado invertebrado) é possível argumentar que a regeneração as torna quase imortais. Se cortarmos uma destas planárias ao meio, as duas metades dão origem a duas novas planárias mais pequenas e com características mais jovens. E se cortarmos estas planárias em dezenas de pedaços, cada uma dessas partes pode dar origem a novas mini-planárias que depois crescem até atingirem o tamanho normal. (...)

(...) Nos vertebrados, a regeneração leva a um rejuvenescimento temporário e parcial do órgão reconstruído e não ao rejuvenescimento do animal como um todo. Os vertebrados que têm grande capacidade regenerativa também envelhecem e vão perdendo essa aptidão ao longo da vida, mas ao contrário dos humanos, os órgãos recuperam facilmente de lesões significativas e a funcionalidade dos mesmos é mantida a um nível elevado até uma idade muito avançada.

A ciência ainda não tem respostas definitivas para outra questão: porque é que durante a evolução algumas espécies de animais adquiriram capacidades regenerativas e outros não? O estudo da regeneração em animais modelo, como as planárias, as salamandras ou o peixe-zebra, tem levado a uma compreensão cada vez melhor dos mecanismos moleculares e celulares que permitem que esse processo aconteça. A transferência desse conhecimento para o estudo da fisiologia humana poderá vir a permitir que se desenvolvam formas de estimular a regeneração de órgãos e tecidos nas pessoas, o que abre a possibilidade de recuperação da funcionalidade de órgãos lesionados, e isso poderá contribuir para vivermos mais e melhor.

Os tecidos e órgãos que regeneram têm vários atributos especiais que se revelam durante o processo regenerativo. A presença e atividade das célulasestaminais que se podem transformar em todos os tipos de células necessárias para reconstruir os tecidos danificados. (...) Uma possibilidade é as célulasestaminais já existirem nos tecidos, num estado adormecido, e serem ativadas e recrutadas para o local onde são necessárias durante a regeneração. Ou, em resposta aos danos nos tecidos, algumas das células especializadas existentes adquirem características embrionárias e dão origem a novas células estaminais, que por sua vez contribuem para o processo regenerativo. Em qualquer dos casos, (...) as célulasestaminais ativadas multiplicam-se e dão origem às novas células especializadas necessárias para reconstruir os tecidos e órgãos danificados.

A segunda particularidade é a capacidade que os tecidos que regeneram têm para eliminar células senescentes (uma espécie de zombies celulares que se vão acumulando nos tecidos à medida que vão perdendo funções). A sua formação funciona como um mecanismo de defesa, produzindo sinais de alerta para o sistema imunitário e evitando que células velhas ou deficientes degenerem em doença, como o cancro. No entanto, a persistência de elevado número de células senescentes nos tecidos ao longo do tempo acaba por ter efeitos nefastos, principalmente porque causa uma inflamação crónica. A formação das células senescentes é também estimulada quando ocorre uma lesão porque nesse caso muitas células parcialmente danificadas tornam-se senescentes. Numa fase inicial, essas células têm um papel positivo e contribuem para a reparação dos danos (...). Contudo, se as células senescentes não forem eliminadas após desempenharem o seu papel positivo, a sua persistência prejudica os processos de reparação. Tipicamente, é isso que acontece nos mamíferos. Pelo contrário, nos órgãos dos animais que regeneram, essas células são eliminadas quando deixam de ser necessárias e o processo de regeneração completa dos tecidos é facilitado.

(...) Podemos imaginar intervenções terapêuticas que potenciem a capacidade regenerativa dos órgãos humanos. Se conseguirmos estimular o recrutamento ou formação de novas célulasestaminais nos locais lesionados e promovermos a sua multiplicação, poderemos eventualmente potenciar a reparação dos tecidos danificados. Por outro lado, se eliminaremos as células senescentes persistentes quando os seus efeitos se tornam negativos, estaremos ao mesmo tempo a contribuir para que o processo regenerativo seja mais eficiente. É claro que estas hipotéticas abordagens terapêuticas têm riscos associados. A multiplicação descontrolada de célulasestaminais pode dar origem a tumores que se podem transformar em cancros, e a eliminação de células senescentes em alturas em que são necessárias pode levar a uma inibição da cicatrização ao invés de um estímulo que torne o processo mais regenerativo.

É importante continuarmos a investigar a regeneração nos animais que têm essa capacidade para compreendermos melhor os mecanismos que regulam este processo extraordinário, e conhecer melhor as propriedades das célulasestaminais e senescentes, em particular em tecidos e órgãos humanos, de forma a aprendermos a controlar as suas potencialidades. Os estudos nesta área contribuirão certamente para que a medicina regenerativa torne possível a reversão de aspetos negativos das doenças e do envelhecimento.

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Realidade e ficção científica
 

Que tratamentos e desafios traz a Medicina Regenerativa?

A procura da capacidade de restaurar funções de tecidos e órgãos impulsiona a Medicina Regenerativa e permitiu alguns tratamentos inovadores bem sucedidos. Mas a passagem da investigação à clínica está ainda no início e são vários os patamares a ultrapassar, da complexidade do corpo humano ao custo dos tratamentos e à sua regulamentação.

“A medicina regenerativa é uma área científica emergente que tem por objetivo restaurar a funcionalidade de tecidos, órgãos ou partes do corpo danificados por trauma, doença ou envelhecimento, através do desenvolvimento de terapias moleculares e celulares e da criação de órgãos de substituição, conduzindo a uma melhor qualidade de vida.”

Joaquim Cabral

Regenerar cartilagem é o mesmo que regenerar o cérebro?

Órgãos artificiais, Parabiose e outras técnicas regenerativas

Joaquim Cabral

O transplante de órgãos é limitado pelo número de órgãos compatíveis levando à morte de pacientes enquanto aguardam o transplante do órgão afetado. A medicina regenerativa e de substituição tem também por objetivo resolver a escassez de órgãos transplantáveis. 

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Scaffolds à base de proteínas humanas (colagénio) têm sido impressos e infundidos com células humanas, num processo chamado recelularização. O objetivo é usar células estaminais que crescem nesses scaffolds e que se diferenciam de modo a regenerar o órgão com a funcionalidade desejada.  

Outra estratégia de fabricação de órgãos é através da xenotransplantação, baseada na transplantação de órgãos de um animal em humanos. Dado que os órgãos de porcos são semelhantes em tamanho e forma aos humanos, porcos geneticamente modificados, para produzir tecidos que não sejam rejeitados pelo corpo humano, têm sido avaliados para utilização dos seus órgãos em humanos.  

Outra abordagem é baseada na ciência da parabiose: "As transfusões regulares de sangue de um doador jovem e saudável podem retardar significativamente o processo de envelhecimento". Investigadores em Stanford e Harvard mostraram que animais mais velhos, quando transfundidos com sangue de animais jovens, conduziram à regeneração dos seus tecidos e órgãos. O oposto também é verdadeiro: animais jovens, quando transfundidos com sangue de animais mais velhos, apresentam envelhecimento acelerado. (...)

As terapias regenerativas têm-se focado em células estaminais e outros fatores que prolongam a vida. As terapias antienvelhecimento utilizam a potencialidade das células estaminais, citocinas e fatores de crescimento para aumentar a longevidade. Tecnologias génicas recentes permitem controlar e reprogramar os genes envolvidos no envelhecimento. A ciência do envelhecimento está na sua infância, no entanto, é expectável que os novos desenvolvimentos em engenharia genética, terapias com células estaminais e órgãos de substituição tenham um efeito profundo no futuro da medicina e possam reverter o processo de envelhecimento, ajudando-nos a ser mais jovens e saudáveis.

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Transplante de medula contra o VIH?

Joaquim Cabral

A Engenharia de Tecidos

Alexandra Marques

A Engenharia de Tecidos desenvolve técnicas e métodos de modo a perceber as relações funcionais e estruturais em tecidos normais e doentes e a desenvolver substitutos biológicos capazes de restabelecer, manter ou melhorar essas funções. 

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Embora a primeira definição de Engenharia de Tecidos date de 1987, e o primeiro artigo científico em que este termo é usado seja de 1989, aquela só foi publicada em 1992. Uma publicação na prestigiante revista científica Science (...), em 1993, e uma reportagem da BBC, em 1995, sobre o potencial de cartilagem artificial produzida por Engenharia de Tecidos em que foram mostradas imagens de um ratinho com uma “orelha nas costas” (auriculosaurus), catapultaram a área. A primeira aplicação do conceito aconteceu em 1991: as células de cartilagem de um paciente com síndrome de Poland que não tinha osso e cartilagem na parte esquerda do peito, foram aplicadas numa estrutura 3D com a forma desejada de modo a recriar uma proteção peitoral física para o coração. Uma abordagem semelhante foi seguida em 1998 tendo uma estrutura 3D porosa de coral moldada na forma do osso do polegar sido combinada com células retiradas da membrana que reveste o osso do paciente. No mesmo ano é aprovado pela agência reguladora americana Food and Drug Administration (FDA) o primeiro produto de Engenharia de Tecidos – o substituto de pele Apligraft®. Estas conquistas, aliadas à crescente escassez de tecidos e órgãos para transplante, estimularam os sucessivos desenvolvimentos na área da Engenharia de Tecidos nos anos seguintes. De tal modo que a revista Time considerou, em 2000, numa das suas reportagens de capa (What will be the 10 hottest jobs?), a profissão de “engenheiro de tecidos” como sendo a mais desejável. 

No entanto, o início do século marcou o princípio dos desafios para o campo com os obstáculos enfrentados na aprovação pelas entidades reguladoras aos mecanismos (quase inexistentes) de reembolso (quer por parte das seguradoras quer por parte dos sistemas de saúde) e, consequentemente, à comercialização e aplicação clínica dos produtos desenvolvidos. A última década foi particularmente profícua em novos desenvolvimentos científicos na área, contudo, aos desafios iniciais têm sido adicionados outros nomeadamente a eficácia clínica, ainda reduzida, de grande parte das tecnologias.

O primeiro produto de Engenharia de Tecidos — Apligraft® — combina células da pele de dadores humanos (células alogénicas) numa estrutura 3D de colagénio (o maior componente da matriz da pele) de origem bovina. É um substituto bicamada uma vez que é constituído por dois tipos de células organizadas de um modo semelhante às duas camadas principais da pele (derme e epiderme). A grande limitação deste e outros substitutos de pele alogénicos é o tempo reduzido de persistência na ferida após transplantação (entre seis a oito semanas). Por isso mesmo, são considerados substitutos temporários uma vez que, mesmo não desencadeando respostas imunes que possam induzir a sua rejeição, não integram com o tecido no local onde são transplantados. 

(...) Há um longo caminho ainda a percorrer no que diz respeito ao desenvolvimento de um substituto de pele que incorpore todos os componentes biológicos da pele nativa ou aqueles que sejam capazes de restabelecer totalmente a sua função. Embora importantes na cicatrização de determinados tipos de ferida, os substitutos atuais falham nessa perspetiva uma vez que a pele nova que é formada é diferente em termos de organização e composição (morfologia) e função (fisiologia), não tendo por exemplo qualquer um dos apêndices como os pelos, as terminações nervosas ou as glândulas sudoríparas, todos eles com funções primordiais na pele humana.(...)

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Porque demora investigação a tornar-se tratamento?

Nova Oportunidade
 

Regenerar para aumentar a qualidade de vida?

Se a qualidade de vida nos faltar, até que ponto é relevante a longevidade? A Medicina Regenerativa não quer ser a fonte da eterna juventude mas a oportunidade para prolongar capacidades que nos mantêm a saúde e a curiosidade pela vida, independentemente do tempo.

Em busca do tempo perdido

Mário Barbosa


Reservemos para a regeneração um papel mais modesto: melhorar a qualidade de vida, tanto física como psicológica, sabendo da íntima ligação entre ambas. A regeneração biológica é um processo natural, inerente à manutenção da vida e à sua evolução, mas também à sua finitude. Regenerar pode ser rejuvenescer, no sentido em que readquirimos bem-estar ou funções perdidas, mas não nos devolve à infância ou à juventude.

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As invenções que mais marcaram a evolução da humanidade não foram o fogo, a roda, a máquina a vapor ou a internet: foram o tempo e a divindade. Ambas, na sua intangibilidade, marcam dois lados essenciais da vida humana. O tempo, na sua versão cronológica, é um elemento organizador e condicionador do lado físico da vida. A divindade complementa-o, através da espiritualidade, dando um sentido supremo ao inexplicável ou um propósito compensador à finitude material do humano. (...)

Hoje, a tecnologia digital está em todo o lado. Os noticiários anunciam o tempo exato dos intervalos, a duração das chamadas telefónicas é contabilizada ao segundo, perde-se um avião por outro tanto. A duração de tudo que fazemos ou planeamos pode ser contabilizada com absoluta precisão. As horas, os dias e os anos são convertíveis em múltiplos do segundo, redefinido, a partir de 1967, através do tempo atómico, tornando o tempo astronómico obsoleto. E, contudo, a Natureza segue a sua evolução natural, indiferente aos novos hábitos da espécie humana. Mas será que a diferença entre estes dois referenciais temporais nos afeta? Penso que sim. Construímos um modelo de vida baseado na linearidade do tempo que permite organizar a vida social e económica. Sem ela, a nossa vida seria caótica. No entanto, a nossa perceção do tempo continua a ser subjetiva. Há um tempo psicológico que não atribui sempre o mesmo valor aos minutos e segundos físicos (...). Um segundo psicológico não dura necessariamente mil milissegundos. A perceção do tempo é regulada pelo chamado “relógio interior” que tanto pode dar origem a uma perceção dilatada como comprimida do tempo. Estes processos fazem parte das nossas vivências comuns, mas podem ser acentuados em estados depressivos. As nossas experiências não são vividas como uma sequência de estados separados, mas como um contínuo de estados, sem duração definida ou sequência cronológica. Recordamos experiências de forma matemática ou cronologicamente caótica, sem uma datação necessária para a sua invocação. A consciência é temporalmente interpolada, traduzindo-se não apenas na forma como invocamos experiências ou fazemos projeções sobre o futuro, mas também como as relatamos. (...) A nossa consciência tem a capacidade de integrar no presente eventos que ocorreram ou poderão ocorrer em tempos físicos distintos, sendo o “agora” o lugar de reencontro entre o que já não é (passado) e que não existe (futuro). No limite, os tempos convergem num ponto, transformando o tempo psicológico num conceito. Dez anos passados parecem mais curtos do que dez anos futuros.

 

Regeneração e tempo biológico

Regenerar é um conceito com uma componente temporal intrínseca, por isso não explícita nem necessariamente associada ao tempo físico ou ao tempo psicológico. (...)

A renovação dos tecidos envolve um equilíbrio dinâmico entre os processos de formação e degradação dos mesmos. Estes processos são, em grande medida, condicionados por um sistema de temporização interno, inerente ao funcionamento de todas as células. O ritmo circadiano, ou seja, a sucessão dos dias e das noites, condiciona o funcionamento do nosso relógio biológico. Apesar da ativação desse relógio estar associado à captação da luz através da retina, o relógio biológico continua a funcionar mesmo em condições em que há privação de luz, mantendo uma periodicidade impressionante: cerca de 24 horas. A roda dentada que está no centro deste fascinante mecanismo de controlo do tempo biológico está localizada no núcleo supraquiasmático (NSQ), que é um pequeno grupo de células localizadas na base do hipotálamo. O NSQ controla, através da glândula pineal, a produção de melatonina, uma hormona que está associada à indução do sono, sendo os seus níveis crescentes à medida que a noite se aproxima. Admite-se que todos os vertebrados possuem os seus próprios relógios biológicos, os quais são controlados pelo ciclo dos dias e das noites, mas não exclusivamente por este. No final dos anos 90, foi progressivamente alterada a ideia de que existe apenas um sistema central de controlo temporal. Hoje, admite-se que praticamente todos os tecidos e células possuem os seus próprios relógios biológicos, ativáveis por ação da luz, tanto in vivo como in vitro. Ou seja, admite-se que exista um relógio central e relógios periféricos, ambos dependentes de estímulos luminosos. A luz é essencial para o desenvolvimento das espécies e a sua privação dá origem a malformações e ao aumento de mortalidade. Para a compreensão do processo de desenvolvimento das espécies, é significativo o facto de peixes cegos que habitam cavernas da Somália e do México, há cerca de dois milhões de anos, não possuírem ritmos moleculares ou comportamentais circadianos. O que estes estudos demonstram é que existem mecanismos biológicos autónomos ancestrais de controlo do tempo.

Acertar os ponteiros

A questão que podemos colocar é em que medida é que estes processos internos podem ou não ser desregulados pela introdução de padrões de vida condicionados pelo tempo físico, no sentido de tempo matematicamente linear. A tenologia permite-nos prolongar o tempo de luz, diminuindo, de forma perigosa, o período de repouso, que é essencial à remodelação silenciosa dos tecidos e órgãos. (...) O aforismo “deitar cedo e cedo erguer, dá saúde e faz crescer” está em linha com a ideia de que o dia é para trabalhar e a noite para descansar. Contudo, o nosso ciclo atual de vida alterou esta forma de encarar a luz e a escuridão. Trabalhamos de dia e de noite. Dormimos pouco e de forma irregular. O stress entrou nos nossos hábitos, assim como a toma de medicação para dormir, desde a prescrita por médicos até à de venda livre. A questão que isto coloca é se o nosso relógio biológico tem capacidade de se adaptar a um estilo de vida frequentemente cronometrado ao minuto, quando não ao segundo. A precisão com que medimos e padronizamos o tempo é uma aquisição recente, sendo espectável que os ritmos biológicos e cronológicos possam sofrer desfasamentos.

Em média, hoje vivemos mais tempo. Em 2014 havia 85 milhões de pessoas com mais do que 65 anos de idade na Europa (17% do total da população europeia). Em 2030 prevê-se que sejam mais de 125 milhões (23% do total) e em 2060, 155 milhões (30% do total)[7]. Estes números expressam, claramente, o facto de que a nossa quantidade de vida tem aumentado. A principal questão que se tem levantado à volta do tema tem que ver com a longevidade. Havendo uma percentagem cada vez maior de pessoas idosas, haverá um limite para a longevidade? O número de centenários e super-centenários (pessoas com idade superior a 110 anos) continua a aumentar. (...) Entre 1990 e 2017, a mortalidade devida a infeções entéricas, infeções respiratórias e tuberculose, complicações maternas e neonatais diminuiu, particularmente nos países menos desenvolvidos, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. Em contrapartida, e também de acordo com o mesmo relatório da OMS, a esperança média de vida em 2017 era de 73 anos, mas a esperança média de vida saudável era de apenas 63 anos. Ou seja, 10 anos são vividos com pouca qualidade de vida. As doenças cardiovasculares continuam a ser as principais causas de morte. Temos mais tempo, mas teremos, necessariamente, um tempo maior? 

A questão da qualidade de vida e o prolongamento do tempo durante o qual dela usufruímos é, na minha perspetiva, mais importante, do ponto de vista social, do que o da longevidade. Naturalmente, esta levanta questões científicas e filosóficas importantes que, no limite, conduzem à formulação de perguntas sobre a imortalidade do corpo, assegurada que possa estar a imortalidade das memórias e da alma, dependendo das evocações ou das crenças. Reservemos para a regeneração um papel mais modesto: melhorar a qualidade de vida, tanto física como psicológica, sabendo da íntima ligação entre ambas. A regeneração biológica é um processo natural, inerente à manutenção da vida e à sua evolução, mas também à sua finitude. Regenerar pode ser rejuvenescer, no sentido em que readquirimos bem-estar ou funções perdidas, mas não nos devolve à infância ou à juventude. O cronómetro biológico não volta ao zero quando se inicia uma etapa nova na vida, originada por mudanças físicas, sociais, ambientais, laborais, estéticas ou outras. Tal como encaro a engenharia regenerativa – prefiro esta expressão a medicina regenerativa, embora ambas impliquem, no concreto, uma intervenção sobre tecidos e órgão com a mesma finalidade – a sua função primordial é melhorar a qualidade de vida. Ela não é dirigida apenas aos mais idosos, mas a todos os que padecem de patologias não resolúveis por via natural ou com recurso a terapias convencionais (...). Ou seja, o seu papel deve ser reduzir progressivamente os anos vividos com pouca qualidade de vida (...). Como outras novas tecnologias, a engenharia regenerativa não é, ainda, democrática. Acedem a ela as sociedades mais desenvolvidas e os indivíduos com maior capacidade económica ou com direito à prestação de cuidados de saúde globais e não discriminatórios. No entanto, tal como sucedeu com outras tecnologias de ponta, é desejável que as terapias regenerativas cheguem ao estado de terapias convencionais.

O ser humano, como espécie, é muito novo. Temos apenas 90 a 130 mil anos. Os equinodermes (por exemplo, estrelas e ouriços do mar) existem há cerca de 600 milhões de anos. Os primeiros répteis surgiram há 350 milhões de anos. É bem conhecida a grande capacidade regenerativa das estrelas do mar, das salamandras e de alguns lagartos. Estes e outros animais são uma preciosa fonte de inspiração para a engenharia regenerativa. O ser humano é impressionantemente novo face a eles. No processo evolutivo ganhou competências que outros animais não possuem, mas perdeu outras. Uma, foi a diminuição da capacidade de regenerar partes inteiras do organismo.

A regeneração não é uma nova roda dentada no complexo mecanismo do relógio que ancestralmente comanda a vida. Os ponteiros desse relógio não atrasam nem regridem. (...) Com base nele tomamos decisões socialmente necessárias ou convenientes, mas não regeneramos o tempo. Acertando continuamente os ponteiros tornamos infinitamente pequeno o tempo perdido.

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Regenerar para ganhar mais ou melhor tempo?

«Desde logo o estudo dos processos biológicos do envelhecimento é muito importante para tentarmos diminuir o impacto das doenças crónicas e aumentarmos a esperança de vida saudável, ou seja, o número de anos sem doenças. A agência Europeia de Inovação para o Envelhecimento Ativo e Saudável (EIP-AHA) estabeleceu como meta aumentar em dois anos a esperança de vida saudável até 2020. Para que tal aconteça é necessário percebemos melhor a biologia do envelhecimento e desenvolver intervenções que possam desacelerar o processo de envelhecimento».

Lino Ferreira