RICARDO TOSCANO
a perseguir contradições

Chasing Contradictions

Em 2023, Ricardo Toscano e a Culturgest celebram 30 anos. Combinámos por isso fazer a festa em conjunto com dois concertos: um para relembrar uma obra emblemática da história do jazz - with strings, de Charlie Parker - noutro para perseguir contradições e atingir novos horizontes em tempo real - Chasing Contradictions, o mais recente álbum de Toscano com Romeu Tristão e João Pereira. 
Neste microsite começamos a percorrer as cordas que Charlie Parker, num gesto de audácia, juntou ao saxofone num tempo entre 1948 e 1950.
No palco vemos Ricardo Toscano a interpretar um marco da história do jazz com a Orquestra de Câmara Portuguesa, acompanhados pelo maestro Pedro Moreira. Para, logo no dia seguinte, nos apresentar novos caminhos que trilhou em Chasing Contradictions.

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Gonçalo Falcão
 

Charlie Parker

Se quisermos reduzir toda a história do jazz a cinco nomes fundamentais, o de Charlie Parker (1920-1955) tem que constar. E se fizermos o mesmo exercício para três, continuará presente. “Bird”, como também ficou conhecido é um dos artistas mais marcantes, que personifica ainda hoje o arquétipo do jazzman e é um dos músicos mais influentes do século XX.
Não podemos esquecer que o jazz é uma música popular nos Estados Unidos e Parker sintetizou todas as inovações que surgiam em Kansas City numa fórmula única, uma porta nova por onde, ainda hoje, continua a entrar muita gente.
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O bebop, que Charlie Parker ajudou a criar, é uma música fundamental, que traz consigo várias revoluções: é afirmação da liberdade dos negros; uma contestação aos standards da indústria; a celebração da beleza dos pequenos grupos e o afastamento em relação à disciplina das grandes orquestras.

Mas acima de tudo o bebop deixou de ser uma dançável e passou a ser uma música para ouvir. Formou uma nova audiência, criou um público. Parker escreveu o livro de estilo do jazz moderno.

Começou a sua profissionalização em 1936, com 16 anos, e tocou com vários grupos durante 10 anos. A primeira gravação em seu nome foi em fevereiro de 1945 (para a Savoy) e em 1947 regressou a Nova Iorque, depois de uma pausa de seis meses para se tentar livrar de anos de adição à heroína (usou drogas descaradamente e em quantidades prodigiosas). Por razões que nunca foram totalmente esclarecidas, resolve fazer em 1949 uma gravação esdrúxula, com uma pequena orquestra de cordas em vez do seu quinteto monarquista (que contava com Miles Davis e Max Roach). Creio ser hoje incontroverso afirmar que, mesmo no contexto “smooth” de With Strings, ouvimos solos extraordinários e um mestre a tocar no auge das suas capacidades.

Não será também muito polémico dizer que, em grande medida, a decisão de gravar neste contexto se deveu à vontade do saxofonista. Não foi uma imposição comercial do produtor. Podemos imaginar que questões como o racismo (o estatuto de liderar uma pequena orquestra com instrumentos europeus) terão pesado, mas também o desejo de experimentar o bebop num cenário pouco ágil que valoriza o solista. No final dos anos 40 Charlie Parker foi entrevistado três vezes para a imprensa musical e referiu sempre o seu amor à música clássica. A maior parte das entrevistas mencionam a vontade de estudar a tradição europeia, cursar com Nadia Boulanger ou Marcel Mule. Pouco antes da sua morte, fala com Edgar Varèse sobre a possibilidade de ser seu aluno.

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Charlie Parker With Strings

Parker with Strings é o nome de dois discos diferentes e de uma compilação lançada em 1995 pela Verve que os agrupa.
O primeiro foi gravado a 30 de novembro de 1949 e lançado em 1950 pela Mercury. Um 10 polegadas (78 rotações) com seis músicas. Por razões desconhecidas (mais uma vez muitos biógrafos apontam para uma escolha do próprio músico) Parker só gravou “standards” (canções populares americanas) e não temas seus.
 
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O produtor Norman Grantz pousou “Bird” num estúdio com um pequeno grupo clássico e uma seção rítmica de jazz. O disco foi um sucesso comercial, o que o levou novamente para estúdio a 5 de julho de 1950, para fixar em fita mais oito músicas. O novo disco saiu com o nome antigo, na mesma editora. A opção foi a mesma do primogénito, só canções populares (Cole Porter, Rodgers e Hart, George e Ira Gershwin, entre outros). Ambos best sellers no seu tempo, fizeram com que Parker fosse admitido no Grammy Hall of Fame em 1988. A coletânea lançada em CD pela Verve a meio dos anos 90 conheceu o mesmo sucesso comercial.

O(s) disco(s) assenta(m) nas canções; um grupo de cordas não tem a flexibilidade de um de jazz, e por isso tudo se passa no campo da melodia e na inteligência expressiva de as tocar. E nos solos, claro. Mas não é por ser grandemente melódico que o jazz fica necessariamente pegajoso e doce. As cordas e sopros criam uma base aveludada, dando espaço ao saxofone para que liberte todas as emoções. Entramos num universo de detalhes e do modo como as coisas são ditas. Parker flutua sobre a orquestra com a elegância de quem consegue dançar descalço numa sala cheia de vidros partidos. “And how sweet a story it is / When you hear Charley Parker tell it” disse Jack Kerouac.

Em nome da história temos de reconhecer que o género “jazz-with-strings” não foi criado por Parker. Algumas bandas lideradas por músicos brancos usavam cordas nos anos 20 (ex: Paul Whiteman); o clarinetista Artie Shaw gravou em 1936 com um quarteto de cordas. Nos anos 40 alguns grupos e orquestras incluíam uma generosa secção de cordas como por exemplo Stan Kenton, Glen Miller ou Tommy Dorsey. Mas - sem serem pioneiras - as sessões de Parker foram extremamente importantes e inovadoras e fizeram com que, desde então, o “With Strings” fosse validado. O macio romântico deste som deixou de ser um complexo e passou a ser um recurso para músicos como Chet Baker, Clifford Brown, Paul Desmond, Art Pepper, Stan Getz e Wes Montgmomery.

Apesar da crítica musical (e também do público, audível na gravação ao vivo incluída na edição da Verve) da sua época não ter aceite o namoro de Parker com as cordas, vendo-o apenas como um projeto comercial, a verdade é que hoje ouvimos como um monumento ao detalhe e expressividade, como um relojoeiro suíço a trabalhar num novo mecanismo.

A importância de Charlie Parker With Strings fez com que tenha sido recriado por vários músicos até hoje, dando razão aos autores dos graffitis que, pouco depois da sua morte, começaram a pintar nas paredes de Nova Iorque: “Bird Lives”

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Ricardo Toscano With Strings

Nos últimos anos têm surgido várias recriações do Charlie Parker With Strings, incluindo uma por Charlie Watts, o baterista dos Rolling Stones. No 30.º aniversário da Culturgest ouviremos Ricardo Toscano – também ele a cumprir 30 anos – e a sua visão desta música. Numa encomenda da Culturgest, estaremos em primeira mão a assistir ao saxofonista como o seu quarteto e a Orquestra de Câmara Portuguesa, dirigida por Pedro Moreira a pegar num material delicadíssimo.
Quando Ricardo Toscano apareceu a tocar em quarteto (com Diogo Duque no trompete, Romeu Tristão no contrabaixo e João Lopes Pereira na bateria), parecia(m) demasiado novo(s) para tocar tão bem. Falavam todos perfeitamente a língua do hardbop e tocavam-no com uma alegria e viço que nos encantou.
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O grupo entregava-se àqueles temas com o coração nos dedos e uma técnica adulta procurando, em cada concerto, um ângulo novo, uma interpretação distinta. O bop foi o primeiro amor de Toscano, entrando pelos seus dois primeiros discos (“Ricardo Toscano Quarteto” e “Chasing Contradictions”) desabridamente.

Procurou tocar todas as noites nos mais diversos locais de Lisboa, mantendo uma ética de trabalho virtuosa. Aprofundou – praticando, vendo, lendo, ouvindo, colaborando - a sua cultura jazzística e as músicas que o movem. Cruzou descomplexadamente fronteiras entre o jazz certo e o jazz errado, aceitando as mais variadas colaborações, desafiando-se a procurar propósitos para uma música que não pode viver musealizada.

E é nesta perspetiva, de ir ouvir a mestria de um músico que conhece profundamente a tradição, mas que continua a querer encontrar novos caminhos, que a proposta da Culturgest nos deixa duplamente curiosos. Para avançar, Toscano vai recuar e vamos querer estar lá, para o ouvir - 64 anos depois – avivar este património.

Num segundo momento voltará no formato habitual, com o seu trio de sempre e com Chasing Contraditions, o disco lançado no final do ano passado que, de algum modo, parece fechar um capítulo e lançar o saxofonista para outros mundos. É difícil dizer hoje quem lidera este trio com João Pereira e Romeu Tristão a terem um papel igualmente fundamental, e uma forma de tocar singular. Cada vez que é tocada ao vivo, Chasing Contradictions muda. Não sei se será o esconjuro do título, mas o facto é que os três músicos desfazem o LEGO, separam todas as peças e montam-no outra vez. Sempre diferente, sempre bonito.

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Casa Forte #22 | Ricardo Toscano | 2023


 

Orquestra de Câmara Portuguesa

Na sua génese está a rotatividade, tocar em pé e de memória, a consciência corporal. A OCP inclui repertório contemporâneo em praticamente todos os seus concertos, tendo abordado jazz e improvisação diversas vezes, mais recentemente em 2022 com uma colaboração e estreia de uma nova suite sinfónica de Shai Maestro e quarteto, criada para a OCP e estreada no Festival Internacional de Música da Póvoa do Varzim.
A OCP recriou obras que incluem cocriação e improvisação dos seus músicos, de criadores como Frederic Rzewski (versão orquestral de “Coming together) e uma recriação de “Schraffur”, de Fritz Hauser, ambas sob a supervisão dos compositores.
Mais recentemente, a Jovem Orquestra Portuguesa (uma iniciativa OCP) realizou um concerto com a música de Joseph Haydn e os improvisadores Josep-Maria Balanyà, Carlos "Zingaro", José Bruno Parrinha e Ulrich Mitzlaff, numa extraordinária ponte musical entre o sec. XVIII e os dias de hoje!
© Joana Linda
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FICHA TÉCNICA

FOTOGRAFIA
Joana Linda

VÍDEO
Rui Xavier

TEXTO
Gonçalo Falcão

EDIÇÃO
Carolina Luz

REVISÃO CONTEÚDOS
Catarina Medina

DESIGN E WEBSITE
Studio Maria João Macedo & Queo