No contexto da sociedade contemporânea que define a nossa vivência diária, habituámo-nos a verificar – e necessariamente a conviver – com uma ideia de aceleração de ritmo proporcionada pela urgência da produtividade. Somos impelidos a acelerar, para poupar tempo, perante a promessa da conquista de mais tempo. Na realidade, a percepção desta aceleração não é tanto uma determinação apriorística, mas antes uma consequência da desvalorização desse mesmo tempo. Momentos instantâneos (cada vez mais curtos) sucedem-se ininterruptamente, devorando-se, devorando e devorando-nos, sem que a eles consigamos associar relevância ou pertinência e, cada vez menos, a possibilidade de constituição de memória.
+ Keep ReadingParticularizando agora, e concentrando o foco, na actividade profissional da Curadoria, parece-nos vital repensar o enquadramento acelerado em que passámos a desenvolver o nosso trabalho quotidiano – sobretudo numa era pós-digital, saturada de informação – e o quanto experimentamos, por inerência de funções (que se multiplicam, desdobram e renovam constantemente), um esmagamento, um assoberbamento generalizado que, ao invés de nos aproximar da possibilidade de produção de conhecimento através de experiências estéticas significativas e ricas, nos afasta constantemente ao limite do fracasso. Altos níveis de produtividade, exigência, atenção, informação saturada, muito dispersa e um consumo cada vez mais deficiente e distraído, marcam os nossos dias, e não são afinal mais do que um decalque do entendimento da actividade laboral instituída pelos modelos neoliberais.
É interessante e oportuno, parece-nos, repensar estes modelos e fazer aproximar a prática curatorial de uma actividade mais ligada ao mundo e à vida, procurando formas mais significativas de operar na relação com os objectos, com os seus processos de concepção e produção, com os artistas e explorando possibilidades de relação que possam devolver à experiência estética a dimensão contemplativa que necessariamente lhe é intrínseca. Procurar recuperar o sentido original do termo, aproximando a Curadoria da sua responsabilidade cuidadora, cuidadosa, atenta, permitindo-lhe acontecer ao seu ritmo, contrariando uma ideia sistemática de avanço precipitado, de compulsão para a produção (apenas pelo garantir da produção), abrindo caminhos de intervenção e de pesquisa, visando outras possibilidades de ser neste espaço e neste tempo.
- ResumeA exposição #Slow #Stop... #Think #Move propõe-se como um ensaio, em torno da possibilidade de contrariar o tempo hegemónico. Dando continuidade a uma investigação (já esboçada em projectos curatoriais anteriores) em torno da possibilidade de edificação de uma prática curatorial desacelerada, lenta, que contrarie a urgência tendencial, através do recurso a um conjunto de estratégias processuais definidas – como a curiosidade, a observação, a investigação, a atenção dirigida, mas também a procrastinação assumida, a recusa e a negação – e procurando valorizar e respeitar (dilatadamente) os vários tempos que compõem o continuum de tempo implicado na preparação de uma exposição, entendemos este ensaio como um exercício especulativo em desenvolvimento, que se pretende duracional.
+ Keep ReadingAo longo dos vários intervalos de tempo que compõem o referido tempo continuum, permitimo-nos travar e parar... entendendo o parar numa dimensão particular que implica o não avanço e o não recuo, resgatando apenas aquilo que pode estar entre ambos, para que a partir dessa paragem (entre) possa acontecer o pensar. Foi este parar (entre) que nos permitiu reflectir sobre a possibilidade de dilatação do tempo da própria experiência expositiva, sobre a possibilidade de testar elementos que, de forma clara, possam ajudar a produzir, no espectador, uma experiência dilatada e atenta.
A primeira condição para o estabelecimento dessa experiência dilatada prende-se com a assumpção da condição física e temporalmente divisível desta experiência. Concebendo a exposição em duas partes interdependentes e sucessivas, a decorrerem em intervalos de tempo distintos (entre Fevereiro e Maio a primeira, e entre Junho e Setembro a segunda) e em espaços físicos e localizações geográficas também distintas (a primeira na Fidelidade Arte, em Lisboa e a segunda na Culturgest, no Porto), permitimo-nos convocar duplamente a presença do espectador apelando à possibilidade de uma experiência que, para além de se alongar no tempo, decorre necessariamente de condições perceptivas e cognitivas cumulativas.
- ResumeDesaceleramos primeiro para parar a seguir, para depois pensar e finalmente agir. Há nestes gestos (e o título da exposição aponta justamente para tal) um sentido sequencial claro. Um passo a seguir ao outro, uma acção a suceder a outra. Mas também sabemos que a possibilidade de poderem acontecer num processo que é simultâneo (ou que aparenta sê-lo) é absolutamente real. Nenhuma destas acções toma lugar sem que, para tal, haja a produção de pensamento associada a movimento (a inércia é também ela uma das muitas dimensões do movimento)... a acontecer num determinado intervalo de tempo.
+ Keep ReadingPara esta primeira parte da exposição procurou-se uma aproximação às ideias revolucionárias de desaceleração, de abrandamento ou mesmo de paragem (invocada ou forçada), permitindo – através da apresentação de um conjunto heterogéneo de obras – a constituição de salas-ambiente e proporcionando uma possibilidade de relação lenta e desacelerada, recuperando assumidamente uma ideia de contemplação.
As paredes das quatro salas que constituem o espaço da Fidelidade Arte foram propositadamente pintadas de um tom cinza escuro e a iluminação mantida num grau de intensidade propositadamente baixo, solicitando ao espectador (logo num primeiro momento) um tempo necessário para que possa processar-se uma natural adaptação da sua acuidade visual.
- ResumeNa primeira sala, apresentam-se um conjunto de obras (Ana Jotta, Ana Santos, Fernando Calhau, Mattia Denisse, Michael Biberstein e Sol Lewitt) reunidas em torno de princípios de indeterminação e ambiguidade, procurando um deslocamento da questão da representação e do reconhecimento, e privilegiando a possibilidade de encontro com o misterioso, solicitando ao espectador uma relação temporalmente dilatada. O universo sensorial e cognitivo da primeira sala é prolongado para a segunda onde se apresentam apenas três obras (Isabel Carvalho, Jonathan Monk e Luís Paulo Costa) que, embora de certa forma encapsuladas e ensimesmadas, permitem a edificação de relações dialógicas em torno dos seus próprios códigos processuais – linguagem que não comunica, pintura e escultura que citam enquanto simultaneamente procuram alargar os seus próprios limites disciplinares, questionando-se.
Ana Anacleto (fevereiro, 2023)
A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico
+ Keep ReadingA entrada na terceira sala, onde se apresentam apenas duas obras (Armanda Duarte e Mariana Caló e Francisco Queimadela) convida a um mergulho num instante dilatado de tempo e aponta para um olhar na direção dos micro-acontecimentos. Estamos no território do infra-ordinário, do quotidiano, que surge anotado, apontado, sublinhado, revelado através do olhar atento dos artistas. Na passagem da terceira para a quarta e última sala deparamo-nos com uma obra que nos assombra (Francisco Tropa) e que, simultaneamente nos espelha. Num curto instante de tempo anuncia-nos o encontro com um núcleo de obras (António Dacosta, António Júlio Duarte, Isabel Carvalho, Isabel Cordovil, Julião Sarmento, Paulo Brighenti e Vasco Barata) que se organizam, muito claramente, em torno de uma ideia de paragem. Uma paragem limite. Uma paragem que pode vir a acontecer no limite. Parar não implica necessariamente morrer, mas não parar poderá indiciar uma contínua fuga para frente, em direção à exaustão que não permite observar, pensar, cuidar. A presença de sombras, fantasmas, representações ou evocações da morte procuram apontar aqui no sentido de uma ideia de fim eminente ... apenas resgatado pelas duas pinturas de caracóis espelhados (quase gémeos) de Tiago Baptista que, a esse respeito, nos relembram a importância da atenção ao tempo, à sua condição cíclica, convidando-nos a experimentarmos outra possibilidade de ‘ser’ numa proximidade à condição animal: ser lento pode significar ser melhor.
A partir de uma selecção de obras inteiramente distinta desta primeira parte, a segunda parte da exposição dará continuidade a esta reflexão, procurando debruçar-se mais concentradamente sobre as ideias de pensamento, de movimento e de acção, num contexto de promoção da ausência, do deslocamento e do retorno a determinadas práticas que implicam uma atenção também ela demorada, dirigida e presente.
- ResumeFICHA TÉCNICA
FOTOGRAFIA
Vera Marmelo
TEXTO
Ana Anacleto
EDIÇÃO
Carolina Luz
REVISÃO DE CONTEÚDOS
Helena César
DESIGN E WEBSITE
Studio Macedo Cannatà & Queo