ENERGIA DO INVISÍVEL

“O que me interessa é o modo de receber energia, em vez de procurar partir a superfície das coisas. Receber, neste sentido, como as folhas das plantas recebem a energia solar na sua superfície. Ao longo da história da Filosofia Ocidental reprimimos a animalidade do homem, a animalidade humana. Mas reprimimos ainda mais a vegetalidade humana.

Porque há traços do “vegetal” dentro dos nossos corpos e nas nossas mentes.

É assim que podemos pensar sobre a pele. Ao receber a energia solar para produzir a vitamina D, por exemplo, podemos pensar sobre a nossa pele como uma enorme folha. A pele tem muitas das propriedades da folha, por exemplo, não só respiramos pelos pulmões mas também com a pele, a fotosensitividade da pele, ou mesmo o ouvir. Ouvimos com os ouvidos mas também recebemos vibrações, que passam pelo ar na pele. Ao falarmos de invisibilidade, tornamo-la visível com as nossas palavras".
Michael Marder
Em 2021 passam 35 anos do acidente nuclear de Chernobyl e 10 de Fukushima. Passam também cinco anos desde "Chernobyl Herbarium", livro em que o pensador Michael Marder aborda como o desastre nuclear alterou as plantas, os corpos e a consciência humana. Defensor de uma outra abordagem ao conceito de "energia", Marder chega à atualidade pela invisibilidade das ameaças e das energias, sejam a luz solar, a radioatividade ou um vírus global. Os raiogramas de Anaïs Tondeur reunidos no extraordinário herbário procuram captar o trauma sofrido pelas plantas ao terem sido submetidas a uma fortíssima radiação e documentam a resilência das sementes que cresceram na "zona de exclusão". Mudaremos o comportamento humano se transformarmos a nossa ideia de “energia”?

Quanto mais falamos sobre a invisibilidade, mais a tornamos visível com as nossas palavras. Continuamos a falar dela como se fosse algo monolítico, homogéneo. Mas a primeira pergunta que nos devíamos colocar é a seguinte: existe mais de uma invisibilidade? Tenta imaginá-la. Procura, se não uma forma definida e fixa, com contornos claramente reconhecíveis, pelo menos uma sensação atmosférica. É a invisibilidade do quê ou de quem? O que é que permanece fora de vista? Um ladrão que se esconde na sombra? Acordos secretos de caráter político e económico? Câmaras ocultas e vigilância digital? Radiação? Alterações climáticas? Um vírus?

 

Linum usitatissimum<br />
Zona de exclus&atilde;o, Chernobyl, Ucr&acirc;niaLinum usitatissimum<br />
Zona de exclus&atilde;o, Chernobyl, Ucr&acirc;nia
Linum usitatissimum
Zona de exclusão, Chernobyl, Ucrânia

 

O luto nuclear surge das profundezas do desespero, mas não tem que ficar por aí. Reinventa o luto transformando o seu objeto: passando do outro morto ou destruído (seja humano ou não), para a morte da morte. A putrefação e a decomposição foram sempre aspetos da mortalidade que facilitaram vidas futuras e o futuro da vida em si mesma. São estes processos que se vêem interrompidos pelos materiais nucleares que resistem à ruína, tal como, numa escala de tempo diferente, os plásticos ou alguns metais pesados desordenam o mundo e perturbam o metabolismo planetário.

 

Linum usitatissimum<br />
Zona de exclus&atilde;o, Chernobyl, Ucr&acirc;niaLinum usitatissimum<br />
Zona de exclus&atilde;o, Chernobyl, Ucr&acirc;nia
Linum usitatissimum
Zona de exclusão, Chernobyl, Ucrânia

 

 

Digamos que para uma planta, porém não para qualquer planta. Há, talvez, algo de esperança para outra planta, a planta do futuro, a que está por chegar. Sempre e quando a semente não caia no solo contaminado pelas particulas radioativas e consiga uma passagem segura pelo vento, no estômago de um pássaro ou pela mão humana.

 

Semilla de Linum usitatissimum<br />
Zona de exclus&atilde;o, Chernobyl, Ucr&acirc;niaSemilla de Linum usitatissimum<br />
Zona de exclus&atilde;o, Chernobyl, Ucr&acirc;nia
Semilla de Linum usitatissimum
Zona de exclusão, Chernobyl, Ucrânia
Geranium chinum<br />
Zona de exclus&atilde;o, Chernobyl, Ucr&acirc;niaGeranium chinum<br />
Zona de exclus&atilde;o, Chernobyl, Ucr&acirc;nia
Geranium chinum
Zona de exclusão, Chernobyl, Ucrânia

 

A libertação do sublime das barreiras de segurança erigidas pela razão alia-se com a "beleza livre", que não serve para fins específicos. Esta é a aliança que encontramos na série de Chernobyl de [Anaïs] Tondeur. Os fotogramas não representam nada. Apenas catalogam os vestígios de flores, folhas, talos e raízes, assim como os restos de radiação que contêm. Os efeitos no fundo da imagem são igualmente não representativos. Na medida em que deixa fluir o belo com o sublime, o trabalho de Tondeur está especialmente adaptado às repercussões da catástrofe de Chernobyl no campo da estética. A sua arte não imita a vida; mais do que isso, regista a vulnerabilidade da vida, amplificada pela incapacidade da razão para nos proteger da dicotomia belo/sublime.

 

Linum usitatissimum<br />
Zona de exclus&atilde;o, Chernobyl, Ucr&acirc;niaLinum usitatissimum<br />
Zona de exclus&atilde;o, Chernobyl, Ucr&acirc;nia
Linum usitatissimum
Zona de exclusão, Chernobyl, Ucrânia

 

 

As plantas são respigadoras e forrageadoras, não amontoam o que respigam, ao invés deixam-no ir como partes de si mesmas. Não me refiro unicamente à humidade e à energia solar acumulada. Na zona de exclusão de Chernobyl, as árvores recolhem as partículas radioativas do solo e voltam a deixá-las cair quando mudam as suas folhas, antecipando o inverno. A estação do outono é o tempo da chuva radioativa, de novo, tempo de reviver-relembrar o trauma da terra e tudo o que acarreta.

 

Linum usitatissimum<br />
Zona de exclus&atilde;o, Chernobyl, Ucr&acirc;niaLinum usitatissimum<br />
Zona de exclus&atilde;o, Chernobyl, Ucr&acirc;nia
Linum usitatissimum
Zona de exclusão, Chernobyl, Ucrânia

Invisibilidades, 1986-2020

[Michael Marder e Anaïs Tondeur]

 

"O vídeo que se segue foi criado como o trigésimo quarto gesto de The Chernobyl Herbarium, um retrato de consciência fragmentada, composto por textos e raiogramas de plantas que crescem nos solos radioativos de Chernobyl. Este esforço desenvolve-se com um novo fragmento textual e um raiograma para cada ano que passou desde o desastre. Porém, no contexto da crise despoletada pela Covid-19, não foi possível criar nenhum raiograma. Em vez disso, voltámos a sensibilizar um negativo do primeiro raiograma do herbário. Um vídeo, criado com o designer de som Floriane Pochon, leva-nos de novo ao processo, durante o qual a silhueta de uma planta emerge à superfície de um papel fotosensível, pela exposição ao sol devorador e o subsequente desaparecimento da imagem".

FICHA TÉCNICA

EDIÇÃO E TRADUÇÃO 
Bruno Miguel Castro

ENTREVISTA E REVISÃO CONTEÚDOS
Inês Bernardo

DESIGN E WEBSITE
Studio Maria João Macedo & Queo

RAIOGRAMAS
Anaïs Tondeur

VÍDEO E TEXTOS ORIGINAIS
Michael Marder, Floriane Pochon

Os excertos e imagens deste microsite (exceptuando a imagem inicial) são parte integrante do livro "Chernóbil Herbarium", de Michael Marder e Anaïs Tondeur (Ned Ediciones, 2021)

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