A ARTE CUSTA

Durante dois dias, A Arte Custa junta artistas, investigadores, programadores e curadores para debater o valor do trabalho artístico e as condições da sua contratualização em workshops, uma conferência internacional e uma mesa redonda.
Programa construído em parceria com o CIES – Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Iscte – Instituto Universitário de Lisboa e as sociólogas Vera Borges e Luísa Veloso.

Quais os princípios do trabalho artístico?

Elisabete Paiva, diretora artística Materiais Diversos

IZABELA WAGNER

Socióloga, professora de Sociologia no Collegium Civitas, investigadora associada no DynamE – Dynamiques Européennes, fellow no Institut Convergence Migration

 

A arte é uma profissão? De quem para quem?

A resposta é complexa. Encontrar uma definição precisa de artista foi sempre uma preocupação. Comparemos o trabalho de um artista com o de um médico. Se olharmos para as sociedades ocidentais, encontraremos médicos especialistas, como dentistas, cirurgiões, neurologistas, psiquiatras, empenhados em melhorar a nossa saúde. Se considerarmos a Índia, por exemplo, ou o Bali, encontramos uma prática comum na área da saúde levada a cabo por pessoas que não são formadas, mas cujo trabalho contribui para uma melhoria na saúde. Por outro lado, na Bélgica, existem osteopatas cujas qualificações não são reconhecidas em França.

Com os artistas sucede o mesmo, a questão é igualmente complexa. Sobre aquela pessoa que passou 20 anos antes de se tornar um músico clássico, um virtuoso, nunca se dirá que não é um profissional. No entanto, passou 20 anos sem atingir o nível esperado, e sem se apresentar publicamente. Há poetas, escritores em pleno processo criativo, pintores, artistas que nunca frequentaram academias de arte ou que nunca expuseram os seus trabalhos, e não obstante, sentem que são artistas. E há músicos que não sabem ler ou escrever música. A forma como julgamos a música indiana ou os músicos africanos é um bom exemplo – estes músicos têm que ter nascido numa família musical para serem músicos. Em suma, toda esta complexidade deixa-me desconfortável e não me permite, como investigadora, afirmar que tudo se reduz a profissões.

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Penso que ser ou não ser uma profissão não é a questão mais importante. O mais importante é, talvez, a questão da institucionalização. O que observamos hoje é que, em período de crise, as carreiras e as vidas dos artistas mudam. Como é que lidam com isso (também de um ponto de vista financeiro)? A institucionalização dessas ocupações é, para mim, muito importante, para cuidar das pessoas. Nalguns países, como na União Soviética ou no Leste Europeu há alguns anos, o Estado protegia os artistas sem quaisquer imposições; beneficiavam de proteção mas tinham que seguir a ideologia porque de contrário eram censurados.

Neste tempo de grande crise que enfrentamos – e não me refiro apenas à crise económica que todos sentimos na esfera pessoal, mas à crise da democracia que vemos em vários países, como, por exemplo, na Polónia –, o segmento da sociedade que faz avançar a oposição, ensinando e transmitindo ao povo a ideia de que “temos que lutar” são os artistas, não os académicos. Os artistas estão na linha de frente de quem diz “basta”. Os artistas não são marginais. São a essência da democracia, da humanidade. Têm um papel crucial na sociedade.

Poderíamos considerar a definição do trabalho de artista como algo tão subjetivo como: “Eu sou um artista” ou “Eu vivo dos meus ganhos como artista”. Ainda assim, um violinista virtuoso também pode ensinar. Será que, neste caso, ensinar é um trabalho artístico? Eu diria que sim. Poderíamos aplicar aqui uma definição de Becker de obra de arte: como artista, sou parte de uma obra de arte. Porque na arte não existem apenas artistas; existem também muitas outras disciplinas envolvidas.

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Como imagina um ecossistema institucional mais propício ao surgimento de carreiras artísticas sustentáveis?

Sobre esse tema, diria: pergunte aos artistas. Não tenho para esta questão uma resposta única porque o mundo das artes é muito vasto.

Quais considera serem as especificidades da prática artística enquanto profissão?

Numa só palavra: paixão. É algo intrínseco ao artista, um sentimento de dever voltado para a arte, uma vocação, a contribuição que dá ao mundo, um impulso. É muito importante. Podemos debater se é o resultado da socialização. Ou se certas funções do cérebro se especializam quando se trabalha com paixão; se se desenvolve uma química cerebral que vicia o artista nessa atividade porque é assim que este se sente feliz.

O trabalho artístico envolve trabalhos muito delicados, implica um conhecimento vasto e requer profissões muito específicas e complexas. E porque se tratam de profissões criativas, seria bom que as instituições não se fixassem num modo único de operar. É necessário ter presente que o mais importante é a ecologia, a variedade – não podemos fixar-nos apenas em projetos grandes ou pequenos. Precisamos de todo tipo de ajuda e de apoio para projetos diferentes. A coisa mais terrível são os regulamentos, ou a burocracia, em torno de algo que se quer realmente livre.

“Vejo os trabalhos artísticos como trabalhos de revelação daquilo que é impercetível, ou irreconhecível ou marginalizado. Tratam-se de operações que trazem das sombras à luz.”

Elisabete Paiva, diretora artística Materiais Diversos

Para lançar uma estrutura de criação, que modelo de suporte fará sentido existir?

Vânia Rodrigues, gestora cultural

PIERRE-MICHEL MENGER

Sociólogo, professor de Sociology of Creative Work no Collège de France (Paris)
Quais os pontos fortes e fracos que vê no modelo do estatuto de intermitente?

Pontos fortes: O Modelo Francês do Estatuto Intermitente nas artes performativas, no cinema e nas indústrias de media, foi concebido para proteger a força de trabalho contra perdas de rendimentos decorrentes do risco generalizado de desemprego inerente à criação de trabalho assente em projetos específicos. Na maioria dos países, os trabalhadores liberais, muitos dos quais enquadrados em profissões artísticas, não têm acesso a um seguro de desemprego. Em França, no sector das artes de palco, o freelancer foi equiparado a uma posição remunerada.

Para os que têm direito a benefícios de desemprego, a combinação da segurança e da independência no trabalho podem funcionar de dois modos diferentes para quem tem trabalho suficiente para cumprir os critérios de elegibilidade: 1) Proporcionar a reposição de rendimentos, que reduzam o diferencial remunerativo associado ao risco de desemprego e à incerteza quanto a rendimentos vitalícios. Na verdade, a posição naquele mercado de trabalho precário pode ser otimizada de modo a que cada indivíduo combine rendimentos e benefícios de desemprego a título permanente; 2) Subsidiar períodos de inatividade laboral, que podem ser ocupados como tempo de lazer, de formação para um trabalho mais exigente, ou de procura de um novo emprego.

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Pontos fracos: Este sistema seria um bom modelo se não contribuísse para potenciar o risco de desemprego – por um lado, acelera a segmentação do emprego, por outro, incentiva a dispersão da procura de trabalho num universo de artistas, gerentes e técnicos que cresce mais rapidamente do que o trabalho disponível.

Consequentemente, um esquema como o Seguro de Desemprego Francês, especificamente desenhado para as artes performativas, tem incorrido em dificuldades financeiras desde meados dos anos 80, uma vez que o desemprego com compensações aumentou mais rapidamente que o trabalho remunerado. O emprego criado neste sector tem sido quase exclusivamente de natureza precária ou de curto prazo, o que determina que o trabalho disponível se distribua por um número crescente de agentes. Acresce que, hoje em dia, em França, o montante pago a esses trabalhadores a título de benefícios de Seguro de Desemprego representa mais do que dois terços do total dos seus rendimentos.

De referir ainda um ponto fraco desse modelo de emprego que tem sido desvalorizado. Uma vez que os empregadores não velam por questões de longo prazo relacionadas com as carreiras e a empregabilidade dos seus colaboradores, as pensões dos trabalhadores em regime intermitente são em média muito mais baixas do que as auferidas por trabalhadores equiparáveis noutros regimes. 

Uma análise cuidada do comportamento dos trabalhadores e dos seus empregadores mostra como o risco de desemprego tem estado cada vez mais à mercê de uma gestão orientada para o interior e para manter os custos de trabalho tão variáveis quanto possível, ao mesmo tempo que se mantem um grupo excessivo e diversificado de artistas e artífices para reduzir os custos de inovação. A gestão de carreira, enquanto dimensão de longo prazo passa, portanto, a ser descurada pelos empregadores.

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Existem outros modelos para além do modelo francês?

Desconheço qualquer outro modelo que funcione tão generosamente como o modelo francês. Foram feitas, sem sucesso, tentativas de importação do modelo francês em países como a Bélgica ou a Suíça. Na Holanda, nos anos 80, foi lançado um esquema de apoio bastante radical para artistas, assegurando a cada artista criativo que se candidatasse um salário garantido durante cinco ou dez anos. Os custos revelaram-se incomportáveis, e o esquema foi extinto pouco anos depois.

Internacionalmente, o confinamento e o consequente fecho de instituições culturais e artísticas revelaram ainda mais a fragilidade na qual se encontram muitos profissionais das artes. Como observou esta situação?

As artes performativas são muito mais vulneráveis do que a indústria audiovisual. As artes de palco empregam mais artistas do que técnicos; no sector audiovisual passa-se o contrário. Daqui decorre que os artistas são os mais afetados. As autoridades francesas prorrogaram até meados de 2021 o usufruto das medidas de apoio criadas para viabilizar o direito de compensação por via do Seguro de Desemprego. Resta-nos descobrir o que sucede noutros países onde não existem planos de proteção excecionais para artistas e trabalhadores das artes.

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No que diz respeito à situação francesa, gostaria de acrescentar dois pontos: 1) Os criativos independentes, como os autores e todos os criadores freelancer, estão muito mais expostos a perdas de rendimento não compensáveis. 2) Por outro lado, na maioria dos casos e até ao momento presente, os funcionários permanentes de orquestras e de teatros líricos estão bastante protegidos. Não obstante, o modelo económico deste tipo de organizações, a sua situação de déficit estrutural, está à mercê de uma pressão crescente.

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“A organização e manutenção de uma estrutura que contrata serviços e que se candidata a fundos públicos e privados pode tornar-se asfixiante para o artista que a gere.”

Cátia Tomé, Ivo Saraiva e Silva e Ricardo Teixeira, Silly Season
 
Cátia Tomé, Silly Season
Luís Ferreira, diretor artístico 23 Milhas

De quem para quem?

Inês Barahona e Miguel Fragata, Formiga Atómica

O trabalho nas artes performativas na era Covid-19

VERA BORGES

Nas duas últimas décadas, a situação das artes performativas, dos seus profissionais e organizações agravou-se. Desde a crise financeira de 2008 que o tecido artístico português se encontra mais debilitado e vulnerável ao crónico subfinanciamento público. Num pequeno estudo recente [...], uma pequeníssima parte destes profissionais tem emprego permanente nas organizações mais estáveis, apoiadas pelo Estado e pelos municípios; outra parte importante apresenta-se como independente e lidera ou está ligada a projetos “em carteira” que se renovam em função de apoios nacionais, locais e europeus; outra parte dos profissionais independentes gravitam entre organizações permanentes e organizações que operam por projeto, com convites recorrentes; por fim, os independentíssimos que trabalham nas “margens” da criação artística e que, neste momento, correm o risco de (des)integração nos campos artísticos dominantes.

Esta pluralidade de trajetórias profissionais emerge e perpassa nos quatro principais modelos de organizações que caracterizam o trabalho nas artes performativas no nosso país:

1) as estruturas permanentes dedicam-se exclusivamente ao trabalho artístico, com o apoio regular do Estado e dos municípios.  [...]; 2) as estruturas por projeto têm o apoio do Estado e dos municípios para a realização dos projetos. [...]; 3) as estruturas independentes são constituídas por artistas que não têm, diretamente, um apoio regular do Estado. Realizam atividades conexas e têm o apoio de outras plataformas (de produção, logística). [...]; 4) por fim, as estruturas híbridas que emergem como espaços de convívio, plataformas de experimentação e integração profissional de alguns artistas, com apresentações de teatro, dança contemporânea e música. As aulas e as sessões de teatro, dança e música, os mercados, serviços de bar e refeições sustentam as estruturas.

Os dois primeiros perfis são apoiados pelo Estado, através da DGArtes e marcam uma parte importante da diversidade do tecido de criação artística, no país. [...] Considero ainda importante contemplar dois outros perfis, onde residem a forte incerteza e precariedade, mas, apesar de tudo isso, representam pontos de viragem, uma vez que as estruturas assumem um papel importante nas “margens” da criação artística independente; [...] Estas estruturas estão “fora do radar” das políticas públicas para a cultura, em Portugal, mas representam alternativas aos contextos de crise permanente e poderão ter um papel cultural e social mais importante no período pós-Covid-19, pois promovem uma estreita ligação dos indivíduos aos territórios.

Em geral, as organizações artísticas estão envolvidas em sistemas de trabalho muito precários que não conseguem consolidar a situação laboral dos artistas e outros profissionais que com eles colaboram, por convite; por regra, são profissionais mais jovens e a trabalhar ao projeto, entre o teatro e a televisão, e com forte presença nos media sociais. A hiperflexibilidade e a insegurança do trabalho nas artes performativas é conhecida de todos, sabemos que os profissionais estão inseridos em redes de trabalho descontínuas, com salários baixos, sem segurança e, por vezes, sem perspetivas de futuro. [...]

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O que podemos fazer?

Ficou demonstrado já, em publicações anteriores, que o trabalho artístico tem vivido muito da extrema flexibilidade do “sistema” e dos seus profissionais. Sabemos hoje quais são as vantagens e desvantagens de certos modelos europeus. Quando têm trabalho regular, estes profissionais desenvolvem múltiplos projetos e podem acumular ainda as atividades conexas: o ensino, a direção de workshops, entre outros pequenos trabalhos, os chamados “biscates”, de onde aliás resulta muitas vezes o sistema de proteção e segurança social que uma parte dos artistas tem. A forte flexibilidade contratual dos profissionais, e, nas duas últimas décadas, a normalização do subemprego nas artes têm produzido situações dramáticas (também do ponto de vista psicológico): até aos 45 anos é considerado normal não ter trabalho regular, parecendo que tudo depende do sucesso individual e das capacidades ilimitadas dos profissionais para gerar o seu próprio emprego. Muitos deles, entre os 20 anos - acabados de sair das escolas superiores - e os 50 anos estão sem trabalho real. [...]

Sabe-se, pelos estudos feitos noutros países europeus, que as estruturas por projeto, mantidas pelos intermitentes, foram soluções extraordinárias para a produção musical. Será preservando e fortalecendo diferentes tipo de organizações, que já temos a trabalhar, que conseguiremos um tecido robusto. É importante proporcionar os contextos para a diversificação estética, pois, de outro modo, acabaremos por ter pouca ou nenhuma massa crítica e, sem diálogo crítico, o tecido artístico perde capacidade para evoluir. [...]

Ao Estado caberá dar apoio aos indivíduos, através de diferentes tipos de organizações para criar as condições para que os profissionais possam manter-se a trabalhar. Um tecido com diferentes tipos de organizações, todas elas mais fortes, consegue assegurar uma criação artística plural. As organizações permanentes como os teatros nacionais têm a força da sua programação e uma massa crítica muito importante; do lado dos teatros/auditórios municipais muito está por fazer; das instituições e centros coreográficos ressalta a sua inexistência e a luta constante para manter “à tona” estruturas sólidas. A falta de robustez institucional é uma ameaça à criação artística.

[...] Também no teatro, o modelo das companhias dos anos 70, que há muito tem vindo a desaparecer, deu lugar a estruturas mais ligeiras, mas com condições de trabalho muito pouco seguras. São estas estruturas que tendem a manter ativo o mercado, alimentando a programação intensa de outras estruturas, promovendo atividades artísticas (e lúdicas para diferentes segmentos), apoiando outros artistas e os festivais locais. [...]

 

O que se recomenda?

[...] Continuar a tratar o mundo das artes como um mundo social à parte dos outros, um “mundo de vocações” com as quais as políticas públicas não se metem, um mundo com muitos “chamados”, mas “poucos escolhidos”, não serve para promover a mudanças que as artes e as sociedades atuais precisam. [...]

Se algum papel podemos ter neste momento então que seja chamar a atenção que a arte é um trabalho, cuja sustentabilidade deve incluir melhores condições para todos. [...] É importante a abertura dos municípios e organizações locais a outras lógicas sociais, comunitárias, feitas com base em alternativas adequadas aos territórios, para aproximar os públicos - com diferentes padrões de consumo - das atividades expressivas, da prática e do consumo regular de atividades artísticas. [...]

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“A arte custa porque eu estou parado, estou a pensar. Pensar é um trabalho, parar é um trabalho. [...] Parar, escrever, representar é conseguir contribuir para a construção da subjetividade.”

João Brites, O Bando
João Brites, companhia de teatro O Bando
FICHA TÉCNICA

PARCERIA

Culturgest, CIES – Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Iscte – Instituto Universitário de Lisboa

CURADORIA

Liliana Coutinho, Vera Borges (CIES – Iscte) e Luísa Veloso (CIES – Iscte)

TRADUÇÃO 
Paula Santos

ENTREVISTAS, EDIÇÃO E REVISÃO CONTEÚDOS
Maria João Santos
Catarina Medina

VÍDEO E SOM
Bruno Castro

DESIGN E WEBSITE
Studio Maria João Macedo & Queo

FOTOGRAFIA
Bruno Castro
Vera Marmelo

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